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Sobre a campanha

Nos últimos anos, o Cerrado “entrou no mapa” para muitas pessoas preocupadas com as múltiplas crises e injustiças ambientais que assolam nosso planeta. E a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado se orgulha de fazer parte dessa ampliação de consciência. Desde o seu lançamento, em 2016, por meio da articulação de movimentos, organizações e pastorais sociais com uma longa trajetória de lutas com o pé no chão do Cerrado, a Campanha vem contribuindo para dizer ao Brasil e ao mundo que o Cerrado existe, é belo, é singular e é sociobiodiverso.

Ao mesmo tempo, e fundamentalmente, a Campanha tem realizado essa caminhada ao lado dos povos do Cerrado. Estes são os herdeiros de saberes tradicionais que guiam, há inúmeras gerações, o manejo das matas e paisagens, que fazem dessa rica savana uma das regiões mais biodiversas do mundo, chegando a abrigar cerca de 5% da biodiversidade do planeta. Os povos do Cerrado são os verdadeiros guardiões e multiplicadores dessa riqueza.

São eles que fazem do pequi, do babaçu, do buriti e de tantos outros frutos do Cerrado a base de alimentos, artesanatos e geração de renda. Que conhecem as plantas medicinais e realizam diversos ofícios de cura e benzimento. Que sabem realizar a pesca e a roça no ritmo das cheias e vazantes dos rios. Que sabem o manejo e a roça apropriada para cada agroecossistema. Que sabem manejar os pastos naturais com o gado criado entre os vales e os gerais. Que cuidam dos lugares sagrados de morada dos Encantados. E é com o protagonismo desses povos que a Campanha se fortalece e se enraíza nos chãos dos sertões.

O diálogo de saberes – tradicionais e científicos – é, assim, uma das premissas político-metodológicas básicas da Campanha, trazendo potência para um maior conhecimento das riquezas da sociobiodiversidade dos cerrados e na interpretação dos desafios que enfrentamos ao buscar defendê-las. Esse diálogo permite desconstruir visões coloniais e equivocadas acerca dessa imensa e diversa região ecológica, em especial aquelas que tratam o Cerrado como homogêneo e ordinário, passível de ser devastado para dar lugar a pastos, monocultivos, mineração e infraestruturas.

Mas esse diálogo de saberes também nos convoca ao entendimento de que a contenção da devastação do Cerrado não passa por enfatizar coalizões empresariais aparentemente “preocupadas” com o clima, mecanismos financeiros “verdes”, novos pacotes tecnológicos corporativos do agronegócio que prometem contaminar e desmatar menos, etc. Essas “falsas soluções” de mercado para as crises ambiental e climática seguem na mesma toada dos projetos de devastação: desconsideram a importância dos saberes dos povos do Cerrado e retiram o seu protagonismo na defesa do futuro do Cerrado; ao mesmo tempo que anistiam aqueles que roubaram as terras de tantos povos (e desmataram os cerrados) e chamam de “consolidadas” as terras roubadas em outros tempos. Pela memória, a verdade e a justiça, a Campanha segue na defesa dos direitos territoriais dos povos do Cerrado, em contraposição a qualquer ideia falsa de que este direito esteja sujeito a “marcos temporais”.

São indígenas de tronco Macro-Jê (como os Xerente, Xakriabá, Apinajé e Xavante), mas também Tupi-Guarani (como os Guarani e Kaiowá) e Arawak (como os Terena). São comunidades quilombolas, como os Kalunga, os jalapoeiros e centenas de outras pelos sertões do Cerrado. São comunidades tradicionais, tão diversas como o próprio Cerrado e que têm suas vidas entrelaçadas nas árvores e plantas, bichos, chapadas, vales e águas da região, como as quebradeiras de coco-babaçu, raizeiras, geraizeiras, fecho de pasto, apanhadoras de flores sempre-vivas, benzedeiras, retireiras, pescadoras artesanais, vazanteiras e pantaneiras. São, ainda, as assentadas e assentados de reforma agrária e outras populações de base camponesa.

Se ainda há Cerrado em pé é porque esses povos estão com os pés no chão do Cerrado, lutando para permanecer, retomar e r-existir em seus territórios de direito. E é por isso que não existe defesa do Cerrado sem a defesa dos territórios do Cerrado, onde esses povos conservam e multiplicam essa rica biodiversidade por meio de seus modos de vida. A defesa dos territórios dos povos dos cerrados é, assim, o compromisso que deve guiar as lutas em defesa do Cerrado, em especial em um momento histórico marcado pelo esforço sistemático de poderes públicos e privados em promover a desterritorialização desses povos e comunidades.

O Cerrado é o berço das águas e promove o encontro por meio das águas. Da mesma forma, os povos do Cerrado são como as águas: crescem quando se encontram. E têm se encontrado cada vez mais nesse processo que construímos coletivamente entre tantos movimentos, organizações e pastorais sociais, povos e comunidades do Cerrado e pesquisadores/as, cujo diálogo contínuo de saberes deságua na e alimenta a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.

Fontes:

Diana Aguiar e Valéria Pereira Santos. Apresentação. In: Dos Cerrados e de suas Riquezas: de saberes vernaculares e de conhecimento científico. Rio de Janeiro e Goiânia: FASE e CPT, 2019.

Diana Aguiar e Helena Lopes. Conheça a Campanha em Defesa do Cerrado. In: Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade. Rio de Janeiro: Action Aid Brasil, 2020.

Fotos cedidas por: Andressa Zumpano / Bruno Santiago / Ingrid Barros / Leandro Santos.