Você conhece o Cerrado?
Segunda maior região ecológica da América do Sul e savana mais biodiversa do planeta, o Cerrado é o berço das águas e de muitos povos e culturas. Mais da metade de sua cobertura vegetal foi devastada para dar lugar, sobretudo, a monocultivos e pastagens para o agronegócio. Precisamos parar a devastação e transformar essa realidade. Conheça mais sobre o Cerrado e seus povos para se engajar na sua defesa!
Legenda
Área Cerrado
cerrado transição
Matopiba
Rios
Povos do Cerrado
Os povos do Cerrado são diversos. São indígenas de tronco Jê (como os Xerente, Xakriabá, Apinajé e Xavante), mas também Tupi-Guarani (como os Guarani e Kaiowá) e Arawak (como os Terena e os Kinikinau). São comunidades quilombolas, como os Kalunga, os jalapoeiros e centenas de outras pelos sertões do Cerrado. São comunidades tradicionais, tão diversas como o próprio Cerrado e que têm suas vidas entrelaçadas nas árvores e plantas, bichos, chapadas, vales e águas da região, como as quebradeiras de coco-babaçu, raizeiras, geraizeiras, fecho de pasto, apanhadoras de flores sempre-vivas, benzedeiras, retireiras, pescadoras artesanais, vazanteiras e pantaneiras. São, ainda, os assentados e assentadas de reforma agrária e outras populações de base camponesa.
Se ainda há Cerrado em pé é porque esses povos estão com os pés no chão do Cerrado, lutando para permanecer em seus territórios. E é por isso que não existe defesa do Cerrado sem a defesa dos territórios do Cerrado, onde esses povos conservam e multiplicam a rica biodiversidade da savana brasileira por meio de saberes e práticas que vão se transformando, sendo desenvolvidos e continuamente testados, adaptados e reinventados por meio do manejo consciente das paisagens, ao longo de inúmeras gerações, e por isso mesmo são resilientes, diversos e apropriados a cada lugar. Essa conexão entre tradição e inovação — em meio a uma profunda crise ecológica mundial e mesmo após décadas de devastação do Cerrado pelo agronegócio monocultural — está entre os maiores legados dos povos do Cerrado, partilhando horizontes de vida, agora, e para o futuro.
Fonte: Diana Aguiar e Helena Lopes (Orgs.). Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade. Rio de Janeiro: Campanha em Defesa do Cerrado e ActionAid Brasil, 2020.
Terra e Território
Os modos de vida dos diversos povos indígenas e comunidades tradicionais do Cerrado constituíram territórios sustentáveis, que combinam a manutenção do Cerrado em pé e saberes e fazeres que atravessam gerações. Esse encontro ancestral entre culturas e manejos da paisagem se traduz em uma diversidade de territorialidades.
É assim que o Cerrado se constituiu no coração pulsante de diversas culturas indígenas que por meio de seus trânsitos, cultivaram as paisagens e riquezas do Cerrado desde muito tempo antes da invasão colonial. Também ali, nos sertões do Cerrado, as comunidades quilombolas constituíram territórios de liberdade no enfrentamento à escravidão, conjugando sua ancestralidade africana em modos de vida marcados pelo bem-viver e a felicidade guerreira. No encontro das tradições indígenas, afrodescendentes e de populações migrantes europeias pobres, foram se constituindo comunidades e práticas, com territorialidades específicas em diálogo com as paisagens do Cerrado. Memórias presentes que nos conduzem aos fazeres das raizeiras e quebradeiras de coco-babaçu que desafiam ideias convencionais de território ao manejar paisagens repletas de plantas medicinais e babaçuais muito além de suas terras de posse direta. Povos e paisagens se complementam, como as chapadas e os vales, que marcaram e foram moldados pelas formas de ser e de viver de comunidades diversas como as geraizeiras, fecho de pasto e apanhadoras de flores sempre-vivas. Da mesma forma, os modos de vida das comunidades vazanteiras, retireiras, pantaneiras e de pescadores artesanais, que habitam as ilhas e beira de rios que nascem no Cerrado, moldaram e foram moldados pelo movimento dessas águas.
Essas territorialidades diversas persistem e se reinventam nos interstícios da brutal expansão da fronteira agrícola e minerária, que já devastou mais da metade da cobertura do Cerrado, promovendo conflitos por terra, violência e expulsões. De um total de 7.353 localidades onde, entre 2003 e 2018, ocorreram conflitos por terra no campo brasileiro, 40,5% delas estavam nos Cerrados e suas zonas de transição. Diante desses conflitos, a luta pela terra tem sido contínua.
Nesse processo de r-existência, os povos e comunidades conquistaram o reconhecimento de seus direitos territoriais e de diversas modalidades fundiárias - como as terras indígenas, territórios quilombolas, territórios de fechos de pasto, assentamentos de reforma agrária etc. - mas a realização desses direitos ainda é um horizonte de luta constante e central na defesa do Cerrado.
Fonte:
Diana Aguiar e Helena Lopes (Orgs.). Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade. Rio de Janeiro: Campanha em Defesa do Cerrado e Action Aid Brasil, 2020.
Carlos Walter Porto-Gonçalves. Dos Cerrados e de suas riquezas: de saberes vernaculares e de conhecimento científico. Rio de Janeiro e Goiânia: FASE e CPT, 2019.
"CHEGOU GENTE COM PAPEL NA MÃO DIZENDO QUE ÉRAMOS DONAS DE NOSSA TERRA, PORQUE SEMPRE VIVEMOS E TRABALHAMOS AQUI"
Dona Almerinda
Camponesa da Comunidade do Chupé (PI)
Águas do Cerrado
Nas chapadas e planaltos do Brasil Central, as raízes profundas da vegetação dominante típica do Cerrado promovem a infiltração das águas das chuvas, constituindo a mais importante área de recarga hídrica do país, o que lhe valeu o apelido de "caixa d'água do Brasil". Como resultado, sob o Cerrado se encontram os dois principais aquíferos do país - o Guarani e o Urucuia-Bambuí. Nesse Cerrado berço das águas também nascem importantes rios do Brasil e do continente sul-americano – o Paraguai e seus formadores (entre eles o Cuiabá, o São Lourenço e o Taquari); o Paraná e seus formadores (entre eles o Paranaíba); o São Francisco, o Doce, o Jequitinhonha, o Parnaíba, o Itapecuru, o Tocantins, o Araguaia, o Tapajós, o Xingu, além de vários afluentes do rio Madeira. As duas maiores extensões de terras continentais alagadas do planeta – o Pantanal e os “varjões” do Araguaia – têm também sua dinâmica hidrológica relacionada aos Cerrados e suas chapadas.
O desmatamento das chapadas para dar lugar a monocultivos de soja tem destruído esse sistema hidrológico, com consequências dramáticas. Ao mesmo tempo, em diversas partes do Cerrado e suas zonas de transição, os povos e comunidades enfrentam a apropriação, contaminação, exaustão, assoreamento e barramento dos rios e águas pelos grandes projetos da mineração, agronegócio, portos e outros empreendimentos logísticos, usinas hidrelétricas e aquicultura.
Na Campanha, um importante lema é “Sem Cerrado, sem água, sem vida”, um dizer que carrega a ideia-força de que a conservação do Cerrado é sinônimo de vida, tanto dos povos indígenas e comunidades tradicionais que ali habitam, quanto pelas conexões que permitem que as águas aí nascidas possam saciar a sede e garantir produção de alimentos livres de agrotóxicos, transgênicos e conflitos socioambientais no próprio Cerrado e em outras regiões e cidades banhadas por suas águas. Defender o Cerrado é defender suas águas, uma luta urgente e fundamental.
Fonte:
Carlos Walter Porto-Gonçalves. Dos Cerrados e de suas riquezas: de saberes vernaculares e de conhecimento científico. Rio de Janeiro e Goiânia: FASE e CPT, 2019.
Diana Aguiar e Helena Lopes (Orgs.). Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade. Rio de Janeiro: Campanha em Defesa do Cerrado e Action Aid Brasil, 2020.
Sociobiodiversidade
O Cerrado é a savana mais biodiversa do mundo, chegando a abrigar cerca de 5% da diversidade biológica do planeta. Ao mesmo tempo, os primeiros habitantes dessa imensa região ecológica, os povos da Tradição Itaparica, remontam a entre 15.000 a 12.000 anos antes do presente e já transitavam e se adaptavam aos dois principais componentes da paisagem do Cerrado – as chapadas e os vales. Os povos indígenas e tradicionais, com seu saber-fazer enraizado nas paisagens cerradeiras, são herdeiros dos saberes tradicionais que guiam, há inúmeras gerações, o manejo das matas e paisagens.
São esses povos que fazem do pequi, do babaçu, do buriti e tantos outros frutos do Cerrado a base de alimentos e geração de renda. Que usam a palha do babaçual e do buritizal, o capim dourado, as flores sempre-vivas e tantos outros elementos na feitura de belos artesanatos. Que conhecem as plantas medicinais e realizam diversos ofícios de cura e benzimento. Que sabem realizar a pesca e a roça no ritmo das cheias e vazantes dos rios. Que sabem o manejo e a roça apropriada para cada agroecossistema. Que sabem manejar os pastos naturais com gado criado entre os vales e os gerais. Que cuidam dos lugares sagrados de morada dos Encantados. E é com o protagonismo desses povos que a Campanha se fortalece e se enraíza nos chãos dos sertões.
Assim, as paisagens onde a biodiversidade do Cerrado vibra patrimônios históricos e socioculturais, fruto da convivência e cuidado dos povos com o Cerrado.
Fonte:
Diana Aguiar e Helena Lopes (Orgs.). Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade. Rio de Janeiro: Campanha em Defesa do Cerrado e ActionAid Brasil, 2020.
Altair Sales Barbosa. Andarilhos da Claridade: os primeiros habitantes do Cerrado. Goiânia: Universidade Católica de Goiás. Instituto do Trópico Subúmido, 2002. 416 p.
Territórios do Cerrado
Os modos de vida dos diversos povos indígenas e comunidades tradicionais do Cerrado constituíram territórios sustentáveis, que combinam a manutenção do Cerrado em pé e saberes e fazeres que atravessam gerações. Esse encontro ancestral entre culturas e manejos da paisagem se traduz em uma diversidade de territorialidades.
É assim que o Cerrado se constituiu no coração pulsante de diversas culturas indígenas que por meio de seus trânsitos, cultivaram as paisagens e riquezas do Cerrado desde muito tempo antes da invasão colonial. Também ali, nos sertões do Cerrado, as comunidades quilombolas constituíram territórios de liberdade no enfrentamento à escravidão, conjugando sua ancestralidade africana em modos de vida marcados pelo bem-viver e a felicidade guerreira. No encontro das tradições indígenas, afrodescendentes e de populações migrantes europeias pobres, foram se constituindo comunidades e práticas, com territorialidades específicas em diálogo com as paisagens do Cerrado. Memórias presentes que nos conduzem aos fazeres das raizeiras e quebradeiras de coco-babaçu que desafiam ideias convencionais de território ao manejar paisagens repletas de plantas medicinais e babaçuais muito além de suas terras de posse direta. Povos e paisagens se complementam, como as chapadas e os vales, que marcaram e foram moldados pelas formas de ser e de viver de comunidades diversas como as geraizeiras, fecho de pasto e apanhadoras de flores sempre-vivas. Da mesma forma, os modos de vida das comunidades vazanteiras, retireiras, pantaneiras e de pescadores artesanais, que habitam as ilhas e beira de rios que nascem no Cerrado, moldaram e foram moldados pelo movimento dessas águas.
Essas territorialidades diversas persistem e se reinventam nos interstícios da brutal expansão da fronteira agrícola e minerária, que já devastou mais da metade da cobertura do Cerrado, promovendo conflitos por terra, violência e expulsões. De um total de 7.353 localidades onde, entre 2003 e 2018, ocorreram conflitos por terra no campo brasileiro, 40,5% delas estavam nos Cerrados e suas zonas de transição. Diante desses conflitos, a luta pela terra tem sido contínua.
Nesse processo de r-existência, os povos e comunidades conquistaram o reconhecimento de seus direitos territoriais e de diversas modalidades fundiárias - como as terras indígenas, territórios quilombolas, territórios de fechos de pasto, assentamentos de reforma agrária etc. - mas a realização desses direitos ainda é um horizonte de luta constante e central na defesa do Cerrado.
Fonte:
Diana Aguiar e Helena Lopes (Orgs.). Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade. Rio de Janeiro: Campanha em Defesa do Cerrado e Action Aid Brasil, 2020.
Carlos Walter Porto-Gonçalves. Dos Cerrados e de suas riquezas: de saberes vernaculares e de conhecimento científico. Rio de Janeiro e Goiânia: FASE e CPT, 2019.
"Nós, seres humanos, que vivemos nas matas, nós somos a biodiversidade"
Socorro Teixeira
Quebradeira de Coco-Babaçu do Bico do Papagaio (TO)
Matopiba
Especialmente desde a ditadura empresarial-militar (1964-1985) a expansão da fronteira agrícola sobre o Cerrado foi promovendo o desmatamento da vegetação nativa, a apropriação privada da terra e a violência no campo. Em algumas regiões de fronteira mais antiga - como no Mato Grosso do Sul, Goiás, Mato Grosso e mesmo partes de São Paulo onde havia cobertura de Cerrado - a devastação acumulada da savana é extrema.
A partir da década de 2000, com o chamado “boom das commodities” e, após 2015, com a criação do Plano de Desenvolvimento Agrícola (PDA) Matopiba, esse processo ganha novos e específicos contornos. O Matopiba é uma região delimitada para fins de planejamento governamental, envolvendo o Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, e tratada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) como "a grande fronteira agrícola da atualidade", ou seja, espaço para a expansão do agronegócio, ignorando os territórios dos povos do Cerrado e os fortes conflitos gerados por essa expansão. A área delimitada possui aproximadamente 73 milhões de hectares de Cerrado brasileiro. São nos territórios tradicionais, por sua vez, onde se encontram os remanescentes de Cerrado mais bem preservados no Matopiba - tanto nos vales e baixões, como nas chapadas.
A invisibilização deliberada dos povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais do Cerrado é parte essencial da estratégia de avanço da fronteira. O PDA Matopiba, por exemplo, indica a presença de povos indígenas e comunidades tradicionais apenas nos territórios que naquela altura estavam demarcados e titulados, situação de absoluta minoria dos territórios. Deste modo, excluiu milhares de comunidades indígenas, quilombolas, geraizeiras, de fechos e fundos de pasto etc. já reconhecidas ou em fase de reconhecimento, demarcação e titulação. O agronegócio não expande sua área plantada sobre territórios vazios, mas com a apropriação ilegal de vales, rios, veredas, brejos e chapadas, tradicionalmente ocupados por comunidades rurais.
Com predomínio da posse em relação à propriedade, estes territórios vêm sendo ilegalmente levados a registro nos cartórios como propriedades particulares pelo menos desde os anos 1960. Não se faz a expansão da fronteira agrícola do agronegócio nesta região sem operar múltiplos esquemas de grilagem de territórios tradicionalmente ocupados e/ou terras públicas devolutas. O objetivo da grilagem é justamente incorporá-las ao lucrativo mercado de terras. Ampliar a dimensão da área plantada sobre esses territórios resulta necessariamente na conversão da vegetação nativa em novas áreas para o monocultivo. É por isso que as comunidades do Cerrado gritam: "Não ao Matopiba!"
Fonte:
Joice Bonfim, Debora Assumpção, Juliana Borges, Mauricio Correia e Silvia Helena Coelho. Legalizando o ilegal: legislação fundiária e ambiental e a expansão da fronteira agrícola no Matopiba. Salvador: AATR, 2020.
Ilustrações: Estúdio Massa
Fotos: Welligton Douglas, Bruno Santiago, Edson Prudencio, Dagmar Talga, Gui Gomes, Ingrid Barros, Thomas Bauer.
Fotos: Welligton Douglas, Bruno Santiago, Edson Prudencio, Dagmar Talga, Gui Gomes, Ingrid Barros, Thomas Bauer.