Carta das Mulheres do Cerrado: Mulheres do Cerrado clamam pelo direito à vida com dignidade
Por ocasião da Audiência Temática sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade do Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado, a se realizar nos dias 15 e 16 de março de 2022, nós, mulheres do Cerrado, nos reunimos[1] para fazer ecoar as nossas vozes.
Somos indígenas de vários povos, entre eles Xerente, Krahô, Krahô-Kanela, Apinajé, Krahô Takaywrá, Javaé-Karajá Xakriabá, Tapuia, Xavante, Akroá Gamella, Puruborá, Guarani e Kaiowá, Terena e Kinikinau. Pertencemos às comunidades quilombolas; da agricultura familiar e camponesa dos assentamentos da reforma agrária; às comunidades tradicionais vazanteiras, retireiras, veredeiras, pantaneiras, pescadoras artesanais que habitam as ilhas e beiras dos rios que nascem no Cerrado, como o São Francisco, o Araguaia, o Tocantins e o Paraguai. Somos também apanhadoras de flores na Serra do Espinhaço; somos do pastoreio do gado “na larga” no Pantanal; somos protetoras e defensoras do uso social dos produtos da “mãe palmeira” do babaçu; somos as raizeiras que conhecem o poder de cura das plantas; somos geraizeiras e das comunidades de fundo e fecho de pasto que trabalham o artesanato de capim dourado, fazem roças e criam pequenos animais nos quintais produtivos.
Nossas identidades expressam modos de vida nos nossos territórios ligados ao movimento das águas, à diversidade da flora e da fauna, às roças de sequeiro, varjão ou vazante; às práticas ancestrais de armazenamento, troca, cultivo e manejo de sementes cultivadas e nativas de nossas culturas alimentares. Vivemos uma relação harmoniosa e respeitosa com a natureza em nossos sistemas agrícolas tradicionais. Praticamos a agroecologia em convivência com as características específicas dos ecossistemas segundo o princípio da diversidade. Produzimos alimentos saudáveis para o autoconsumo, comercialização e geração de renda.
Somos as guardiãs do Cerrado e dos saberes tradicionais que herdamos das nossas ancestrais. Expressamos a sociobiodiversidade cerradeira que exige respeito aos nossos modos de vida, base da garantia da soberania e segurança alimentar e nutricional das comunidades e da sociedade.
Ecoamos nossas vozes contra o ecocídio e o genocídio no Cerrado; contra as desigualdades estruturais produzidas pelo patriarcado racista desde a era colonial. Também externamos anúncios em defesa da vida com justiça social, com igualdade, com garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada, com proteção da biodiversidade e do nosso patrimônio cultural. Por isso trazemos a este importante Tribunal Permanente dos Povos os nossos depoimentos, permeados por nossas próprias ideias e vivências.
Tristeza, depressão e adoecimento nos corpos: falas das mulheres indígenas
Nas regiões de Tocantins e Goiás, nos territórios Xerente, Apinajé, Krahô-Takaywra, Krahô-Kanela e Javaé-Karajá, as monoculturas de arroz, soja e cana-de-açúcar estão nos limites das Terras Indígenas (TI), destruindo os roçados e afetando a saúde das crianças e das mulheres. Há perda de roças devido aos agrotóxicos. A luta pela terra ainda é pauta central, pois muitos territórios não estão demarcados, como os dos povos Krahô-Takaywrá (Tocantins), Puruborá (Rondônia), Gamela (Maranhão) e parte dos territórios Tapuia (Goiás) e Krahô-Kanela (Tocantins). Há muitas terras em situação de conflitos fundiários. O Estado nega que haja terra para ser demarcada, a despeito dos direitos dos povos indígenas.
A tristeza e a depressão estão muito presentes nas falas das mulheres, cujos conhecimentos, sabedorias e crenças estão vinculados à biodiversidade nos ecossistemas. Isidoria Krahô-Kanela, da Aldeia Takaywra (Tocantins), denuncia que “o desmatamento traz depressão, crise, brigas, conflitos internos, e também a falta do próprio remédio”. E acrescenta: “(...) na minha região não tem mais do que (havia) pra fazer remédio caseiro. Desmatou tudo (...) é uma tristeza. (...) os remédios que curam é o que fazemos com as árvores, as raízes, as plantas. É sagrado, é um patrimônio nosso, que guardo como um tesouro, que vem da minha avó, meu avô e vem passando pra mim. E pra mim é sagrado as plantas medicinais”. Seu povo vive em um pequeno “cercadinho”. Não usufruem do direito de caçar e plantar. Para alimentar seus filhos dependem de cestas básicas e outras ajudas externas. Com a área atualmente alagada em consequência da expansão dos monocultivos, denunciam a inação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e de outros poderes públicos: “(...) nós estamos aqui, no meio d'água, os animais no meio d'água, os porcos, as galinhas, os jacarés comendo tudo, e a gente teme por criança. Tudo isso é consequência do impacto ambiental”.
As indígenas Krahô da Aldeia Morro Boi (Tocantins), mesmo com sua TI demarcada, enfrentam os impactos do desmatamento ao redor de suas terras e o uso de agrotóxico dos monocultivos. A aldeia não tem água potável para consumo doméstico e falta infraestrutura e transporte para emergências. Como relata Domingas Krahô: “Nós indígenas Krahô, que convive no Cerrado, vem começando a ser prejudicada pelo desmatamento ao redor de nossa terra que está demarcada. Às vezes as frutas não estão dando bem porque jogam veneno perto de nós, e no meio da pandemia a gente trabalha só de braço poquim, estamos sofrendo, precisando da saúde também. (...) E os parentes que moram perto do rio não podem tomar água do rio, têm que tomar das cabeceiras e dos olhos d'água”.
Na comunidade Vão do Vico (Piauí), ao relatar sobre a realidade de sua aldeia, Jaira Akroá Gamela explica sobre a centralidade de enfrentar o genocídio que afeta historicamente as mulheres de seu povo, retirando o direito à identidade e à existência social: “Minha cultura foi totalmente banida (...) porque foi morta, massacrada pelos grileiros, e até hoje eles estão aqui. Mas os encantados que ainda estão aqui, ainda estão tocando em mim. Então se eu tenho essa sensibilidade de ver que ainda há resistência na espiritualidade aqui, é porque ainda há força e coragem para eu resgatar minha cultura. Tá morta pra eles, mas pra mim, dentro da gente não”.
As denúncias incluem a precarização absoluta do sistema de saúde indígena; os riscos à saúde mental frente aos danos cada vez mais crescentes; e os maus tratos nas políticas públicas e dos poderes instituídos sobre seus corpos e comunidades. As indígenas não têm acesso aos exames preventivos ou ao pré-natal e relatam humilhações nas unidades fora das aldeias. Dificuldades também enfrentam as grávidas e suas acompanhantes nos hospitais. Nas palavras de Vanessa Karajá, da Aldeia Nova (TI Xerente, Tocantins): “Aqui muitos parentes estão falecendo, os exames também que é de rotina, exames simples, demoram meses pra poder conseguir, endoscopia, muitas pessoas estão falecendo aqui. Ultimamente os Xerente agora tem medo de ir pro hospital, porque eles acreditam que hospital não tá cuidando do indígena do jeito que é pra cuidar. Muitas pessoas voltam sem vida dos hospitais, não recebem atendimento de qualidade (...)”
Pobreza, fome e sede: impactos dos agrotóxicos e da mineração na produção de alimentos
São inumeráveis as denúncias sobre a mineração e o uso abusivo e indiscriminado de agrotóxicos nos monocultivos, incluindo a pulverização aérea, prática letal contra os ecossistemas e os modos de vida. São grandes os impactos na saúde, na produção de alimentos e nas águas. Em muitos lugares, desaparecem as aves e os animais de caça importantes para a alimentação; ocorre a diminuição ou destruição dos roçados do arroz, milho, feijão, abóbora; avança o desmatamento de áreas de plantas nativas como pequi, baru, babaçu, importantes nas culturas alimentares e na geração de renda.
Roselita Silva, militante por direitos da comunidade Morro Agudo (Catalão, Goiás), testemunha e denuncia que “Comunidades foram dizimadas pela mineração, e as famílias tiveram que buscar outros lugares pra morar. Chegando na cidade é algo totalmente diferente dos modos de vida. Nós, mulheres, não temos mais os meios de renda: fazia queijo, doces, trabalhava com fruta. Agora não temos mais. Eu me sinto impotente diante do poder da mineração e das monoculturas”.
Em Cachoeira do Choro (Curvelo, Minas Gerais), o agronegócio, junto com a mineração, provoca contaminação e destruição do Rio Paraopeba. As mulheres não têm acesso à água potável e sofrem por não poderem prover com dignidade um copo d'água para saciar a sede de seus filhos, como denuncia a pescadora Eliane Marques: “Ontem desci no rio, ele está irreconhecível. Essa última chuva trouxe tanto sedimento e lama (...) Não tem mais uma árvore em pé, as casas foram derrubadas. Com a morte do nosso rio Paraopeba veio a insegurança alimentar, e a insegurança para beber a água. Eu estou coletando água de chuva, coando, fervendo, passando pelo filtro de barro. Na semana passada uma mãe de recém-nascido estava tendo que coar água na fralda para dar para os filhos”. Com a destruição do rio, lá se vão também iniciativas de autoafirmação das economias comunitárias e das experiências agroecológicas. Inviabilizou-se a geração de renda no período da alta do turismo, que favorecia a comercialização dos produtos de seus roçados e quintais produtivos como pequi, peixe, frutos, pimentas, queijos e doces. Com o empobrecimento das famílias, as mulheres se preocupam também com o surgimento da exploração sexual, o aumento da violência e do uso abusivo de álcool e outras drogas.
A comunidade Quilombola Cabaceira (Beira Rio São Francisco, Norte de Minas Gerais) que é também pesqueira e vazanteira, sofre com as tragédias das enchentes provocadas pelo assoreamento do Rio São Francisco. Nessas situações, as famílias precisam procurar outros lugares para morar até as águas baixarem, quando, então, buscam reconstruir, na medida do possível, as perdas. Contudo, as possibilidades de reconstrução se tornam cada vez menores, enquanto a comunidade se torna dependente de ajuda externa com cestas básicas que não chegam para todo mundo. Marinalva Rocha, liderança quilombola da região, conta que já agora em 2022 “os animais que a gente conseguiu trazer está na cidade passando fome, o ser humano também. Eu tenho galinha, bode, porco. Estou tentando arrumar comida pra minha família e pros meus animais. O rio tem lugar que tá muito seco, tem outros que ele transborda, e a fome acontece do mesmo jeito (...) é o português claro. Estou falando de fome. E vamos ter mais fome ainda quando voltarmos pro nosso território”.
Ainda em Minas Gerais, na Comunidade Veredeira Tamboril, o monocultivo de eucalipto vem destruindo a economia comunitária, o acesso ao alimento e à renda, especialmente com as derrubadas dos pés de pequi, dos quais a comunidade tirava seu sustento. Como fala Tamires Santos: “Hoje na nossa comunidade ainda enfrentamos as grandes empresas que chegaram com a monocultura de eucalipto. Tem uma que está derrubando os pés de pequi, e muitos dependem do lucro do pequi. Derrubar o pequi verde no pé está prejudicando bastante. Temos um viveiro de mudas nativas, estamos tentando recuperar as nascentes, fazendo as plantações com voluntários junto com a gente, pra tentar recuperar um pouco do que foi destruído no século XX”.
Na Comunidade Tradicional Raposa, situada no Território Serra do Centro (Campos Lindos, Tocantins), as mulheres também convivem com as pragas dos monocultivos de soja, inviabilizando a produção agrícola e extrativista tradicional. Como conta Marlene da Silva: “Tem os insetos que vem na soja e prejudicam as nossas roças (...) vem as pragas da lavoura e termina prejudicando as nossas plantações. Tem a mosca branca que acaba com tudo, nós plantamos feijão (...) nós plantamos a abóbora (...) a mosca branca vem e mata tudo. A melancia não dá, morre tudo, a abóbora também, o feijão. O único que ainda aguenta um pouco é o arroz, mas também prejudica ele que ao invés de ele vir melhor, ele vem menos”.
No Assentamento Roseli Nunes (Mirassol d'Oeste, Mato Grosso), as mulheres lutam para manter e fortalecer a produção agroecológica, mas suas práticas são interditadas pelas monoculturas e os agrotóxicos e sua força de destruição. Relatam doenças como depressão e alergias causadas pelos venenos jogados nas águas. O desequilíbrio ecológico acaba com os alimentos dos animais e estes procuram alimentos nas roças das famílias. Dona Miraci Silva, produtora agroecológica do território, testemunha esta realidade na prática: “Aqui no assentamento muitas mulheres sofrem com depressão e alergia causada pelo veneno. (...) Foi comprovada a contaminação de nossas águas”.
As quebradeiras de coco babaçu e agricultoras familiares do Acampamento Viva Deus (Imperatriz, Maranhão) não têm acesso à terra e nem aos babaçuais da região, tomados pelo agronegócio. Estão perdendo a produção de milho, feijão, mandioca, abóbora, melancia, e principalmente o arroz. Denunciam que nos últimos anos a pulverização aérea de agrotóxicos vem trazendo adoecimentos e mortes de seus quintais produtivos, e a produção está inviabilizada atualmente com pragas que impedem o crescimento saudável e a colheita. Como diz Zenilde dos Santos Silva: “Esse ano está mais difícil porque meu marido plantou [o arroz] e só nasceu mais capim (…). A abóbora não prestou, a melancia também não, a mandioca também não (...) e o milho também não. A gente não pode entrar no mato para pegar o babaçu, as caças nem se fala (...)”.
Também no Maranhão, nos municípios de Parnarama e Matões, a quilombola Raimunda Nonata percebe esses impactos. Ela diz que em seu Território Quilombola Cocalinho “a gente está sendo muito afetado pelos agrotóxicos, afeta tanto a vida das mulheres, como de crianças, adultos, como todos os animais (...) depois que o agronegócio chegou perto da gente, os pássaros sumiram, animais como veado, tatu, essas caças assim elas sumiram (...) Os gaviões que se alimentavam dos pequenos insetos que se alimentam dos grãos morriam também por conta dos agrotóxicos, não conseguiam mais voar”. O Quilombo vem perdendo a diversidade de sua produção de arroz, milho, feijão e abóbora. As mulheres estão lidando com o aumento de doenças e demandas por saúde: “Apareceu uma coceira, criança e idoso todo mundo manchado e a gente acredita que foi depois que foi jogado o veneno de avião. Quando a gente passa de moto dentro das áreas dos campos pega aquela poeira de veneno, não dorme direito que os olhos ficam irritados, fica muito inflamado. Isso tudo é prejuízo para nós mulheres, para nossas crianças, nossos idosos, a gente está vivendo tempos difíceis mesmo”, explica Raimunda.
No litoral de São Luís do Maranhão, as pescadoras, marisqueiras, agricultoras familiares e quebradeiras de coco babaçu da comunidade tradicional do Cajueiro enfrentam conflitos socioambientais promovidos pela indústria portuária. O Porto Itaqui, destinado ao suporte logístico de escoamento da mineração e do agrohidronegócio, recebe boa parte das commodities produzidas no Matopiba, e vem provocando o desmatamento das áreas de manguezais, aterramento de igarapés e, junto com isso, a mortandade do pescado. Nessa região costeira, as mulheres são afetadas também com a implantação de uma termelétrica, considerada uma das formas mais degradadoras de produção de energia, gerando danos não só ao acesso às áreas de pesca, mas ao cultivo de frutos. Os babaçuais foram destruídos e vários animais sumiram com a falta do seu habitat natural. Lucilene Costa conta: “Para nós foi e é uma tristeza ver nossa comunidade sendo devastada dessa forma (...). Estamos tendo dificuldade até em adquirir alimentação porque o marisco está sumindo (...) e contaminado com óleo que derrama dos terminais (…) Estamos vivendo com dificuldade de adquirir alimento sadio”.
Apropriação da biodiversidade e conhecimentos tradicionais
No Oeste da Bahia, as comunidades geraizeiras e de fundo e fecho de pasto vivem a violência da grilagem da terra, a devastação socioambiental da monocultura da soja e algodão, as ameaças de vida contra lideranças comunitárias e da apropriação das águas, pelas empresas com apoio do Estado. O adoecimento da população é visível. Catiucia Beltrão, que faz parte do grupo de religiosas tradicionais “Encomendadeiras de Almas” (Correntina, Bahia), testemunha a indústria farmacêutica instalando-se nos territórios e vendendo a preços elevados os fármacos explorados da própria biodiversidade do Cerrado. “O agronegócio ganha tacando o veneno na lavoura pra produção e as farmácias ganham com os remédios tirados do Cerrado. Um adoece o povo e o outro ganha com os remédios caríssimos e abertura e inauguração de tanta farmácia”.
Além da produção do adoecimento da população, a apropriação da diversidade biológica e dos conhecimentos tradicionais das mulheres se materializa também na usurpação de nomes e símbolos da sociobiodiversidade destruída. Catiucia Beltrão percebe isso nos nomes dados aos produtos comercializados nos grandes supermercados: “A feira local já voltou, mas os produtos estão desaparecendo, são poucas coisas, precisa ir cedo pra conseguir. O espaço mais é pro agronegócio que além de destruir o cerrado ainda usa os nomes do cerrado nos produtos dele: café cerrado, pasta de pequi cerrado, arroz cerrado, cosméticos do cerrado e outras”.
Nossos anúncios e resistência em defesa da soberania alimentar e da sociobiodiversidade
As principais armas por meio das quais opera o processo de ecocídio contra o Cerrado (os agrotóxicos, a expropriação da terra, o desmatamento, os incêndios, a captação intensiva de água pelo agronegócio) afetam desproporcionalmente a nós mulheres, nossos corpos, nosso cotidiano. Em outras palavras, os nossos corpos são territórios onde se materializa o eco-genocídio, sobretudo em razão dos papéis sociais de cuidado e reprodução social das famílias e comunidades socialmente atribuídos a nós.
Nós, mulheres, além de atuarmos ativamente com nosso trabalho e conhecimento na conservação e proteção dos ecossistemas, sustentamos as práticas que constituem as identidades culturais dos povos do Cerrado, como no preparo dos alimentos, no cuidado das roças, hortas e quintais produtivos, na lavação coletiva de roupa, nos cantos, no preparo de medicinas tradicionais, na condução das rezas, benzimentos e nossos rituais e na feitura de artesanatos que enfeitam e são úteis nas roupas, nas casas, nos barracões comunitários, nas festas e encontros. Nossos corpos se tornam espaços de transformação do ecocídio do Cerrado em genocídio de seus povos. Em primeiro lugar porque a contaminação dos nossos corpos por agrotóxicos implica em maior incidência de abortamento e danos ao leite materno, impactando a saúde coletiva e a reprodução biológica nas nossas comunidades. Além disso, as práticas lideradas por nós são vitais para a manutenção, continuidade e transformações autônomas dos modos de vida dos povos e comunidades, especialmente as mudanças necessárias em relação aos nossos direitos como mulheres, numa sociedade patriarcal e racista. O impedimento ou obstáculos à realização dessas práticas, e da nossa própria ação política enquanto mulheres, em razão do ecocídio – que destrói e contamina nossas roças, medicinas, campos de extrativismo e águas – é a própria materialização do ecocídio em genocídio.
Não podemos aceitar que nossos corpos sejam tratados como descartáveis pelas economias da devastação que se instalam nos territórios e no seu entorno nesse processo de "desenvolvimento" que historicamente tem significado o ecocídio do Cerrado. Nesse processo, as grandes fazendas e os grandes projetos contratam os homens das nossas comunidades em trabalhos precarizados, enquanto promovem o aumento da exploração sexual e o aumento do assédio e da violência contra nós mulheres, nossas filhas, irmãs e companheiras, com a chegada de empreendimentos e suas forças privadas de segurança, com perspectivas de objetificação de corpos e sexualidades, especialmente sobre nossas meninas e jovens.
Estamos plenamente cientes de que a violência contra os ecossistemas e os povos do Cerrado não se instaurou sem as decisões dos poderes públicos. Em todos os territórios, as narrativas das mulheres expressam o descontentamento frente ao alinhamento dos agentes públicos executivos, legislativos e judiciários com este modelo de exploração econômica. O ecocídio e o genocídio no Cerrado são resultado também de ciclos de privilégios históricos contra uma sociobiodiversidade que mais longe não poderia estar do modelo do agronegócio e da mineração, suas demandas, mecanismos e temporalidades, concentrador de riquezas, produtor e espalhador de pobreza e do qual o Estado Brasileiro tem sido, historicamente, agente por ação e omissão.
Essa realidade se agrava, porém, no contexto de destruição de políticas e direitos duramente conquistados ao longo do tempo pelo atual governo, que não esconde suas posições pautadas por misoginia, racismo e antiambientalismo. A dominação da natureza e a subordinação das mulheres, em especial negras e indígenas, são dimensões complementares de uma racionalidade que se funda no apagamento das diversidades e na produção de sistemas de violências. Se historicamente o ecocídio do Cerrado tem sido o resultado de projetos de desenvolvimento patrocinados pelo Estado brasileiro e setores privados nacionais e internacionais que colocam o lucro de poucos acima das vidas e modos de vida dos povos do Cerrado, o bolsonarismo produziu o agravamento das violências e devastação a níveis que nos levam a temer os piores cenários. Para reverter isso não basta somente mudar governos, mas transformações profundas da racionalidade ecocida e genocida que tem se instalado nas fronteiras do agro-hidro-minero-negócio.
Diante de tudo isso, nós, mulheres, temos nos mobilizado enquanto corpos-territórios de resistência ao crime sistemático de eco-genocídio contra o Cerrado e seus povos. Somos partícipes do presente e geradoras de futuros para o Cerrado, que se alimentam da nossa ancestralidade para construir caminhos social e ambientalmente justos.
8 de março de 2022
Articulação das Mulheres do Cerrado
[1] Documento produzido a partir de rodas de conversa com as mulheres de povos e comunidades tradicionais do Cerrado, realizadas pela plataforma Zoom nos dias 7 e 8 de fevereiro de 2022.