Fórum Alternativo Mundial da Água pretende ser um contraponto a evento dominado por empresas transnacionais
Uma alternativa para o debate da água – Fórum Alternativo Mundial da Água foi lançado em encontro que reuniu 3,5 mil atingidos por barragens no Rio de Janeiro
“Água e energia com soberania, distribuição da riqueza e controle popular”. No embalo do lema cantado por um auditório lotado de pessoas atingidas por barragens foi lançado ontem (05) no Rio de Janeiro o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama). Marcado para acontecer entre os dias 17 e 22 de março de 2018 em Brasília, o evento é resultado da articulação entre entidades nacionais e internacionais interessados em construir um outro debate em torno do bem natural. Isso porque o Fama não tem ‘alternativo’ no nome por acaso: no mesmo período e local se realizará a oitava edição do Fórum Mundial da Água, onde empresas transnacionais apresentarão sua agenda sobre o tema.”O Fama é um contraponto a esse ‘Fórum das Corporações’, como chamamos, que acontece de três em três anos, sempre dominado por multinacionais e seus interesses na privatização da água”, explicou Daniel Gaio, secretário de meio ambiente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), uma das entidades que integra a coordenação nacional do Fama.
“Nosso esforço com o Fama é construir um espaço que reúna trabalhadores do campo e da cidade no mundo inteiro na perspectiva do debate da água como direito e não como mercadoria. Não acreditamos que o 8o Fórum represente e dê voz às comunidades, populações e movimentos que sofrem não só problemas de abastecimento, mas com a exploração desenfreada da água, caso da construção de barragens que alagam territórios inteiros, causando grandes impactos ambientais e sociais”, afirmou Edson Aparecido da Silva, da coordenação do Fama, para a plateia presente no encontro nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que reuniu no Rio de Janeiro cerca de 3,5 mil participantes vindos de 20 estados do país.
“Nós, do MAB, historicamente atuamos com populações atingidas por barragens, portanto, diretamente ligadas à água. A defesa da água é uma luta estratégica para a esquerda e uma questão de vida ou morte para populações como ribeirinhos, quilombolas, indígenas que moram próximos a rios, nascentes e protegem esse bem comum que as empresas do mundo estão privatizando”, frisa Liciane Andrioli, da coordenação nacional do Movimento.
Interesses privados
O Fórum Mundial é organizado pelo Conselho Mundial da Água, que tem como membros gigantes do setor, como a multinacional francesa Suez. Edson Aparecido explica que além das corporações, participam do Conselho entidades técnicas e órgãos governamentais, como a Agência Nacional de Águas (ANA). “O problema é que, com o passar dos anos, o Fórum se consolidou como o único espaço que trata do tema da água em nível internacional. Dentro desse espaço, as empresas vêm se apropriando de conceitos como universalidade para defender interesses privados. Nossa bandeira de universalizar água e saneamento aparece nesse discurso da seguinte forma: só as empresas têm condições de fazer”, diz ele, que acompanha pela Federação Nacional dos Urbanitários (FNU) as investidas empresariais no setor. “Há falácias. Por exemplo, eles têm defendido que se dupliquem os investimentos mundiais de 90 para 180 bilhões de dólares, em uma composição em que metade viria do setor privado e o restante dos governos. Mas sabemos como esse ‘investimento’ privado acontece. Afinal, de onde as empresas pegam empréstimos com juros subsidiados e condições de pagamento generosas? Dos bancos públicos”, critica.
A realização do Fórum Mundial pela primeira vez em um país latino-americano acendeu o sinal de alerta. “O lema oficial do evento é ‘Compartilhando a água’. A pergunta que fazemos é: compartilhando que água? Com quem? O Brasil é o país com as maiores reservas de água do mundo, tanto subterrânea quanto superficial. Agora que os países do norte já exploraram ao máximo suas reservas naturais, querem que os países pobres da América Latina e da África ‘compartilhem’ as suas reservas. A gestão das águas, o controle dos aquíferos, as políticas de recursos hídricos têm que ser funções do Estado. E não do setor privado”, defende Edson. “No Brasil, temos água em abundância. Empresas como a Nestlé estão de olho no aquífero Guarani, pensam a água como mercadoria. Por isso, é tão importante a mobilização do Fama para fazer a defesa da água como um bem comum para o povo brasileiro”, completa Liciane.
Voz do povo
É nesse contexto que surge o Fama, que começou a ser articulado em fevereiro deste ano por entidades sindicais e do campo popular que integram o Coletivo de Luta Pela Água, criado em 2014 no contexto da crise hídrica de São Paulo. “Para se ter uma ideia, o valor da entrada do ‘Fórum das Corporações’ é de 300 euros. E o formato de participação da sociedade se resume ao que eles batizaram de ‘espaço cidadão’. No período que antecede o Fórum, são basicamente consultas pela internet. Durante o evento, um documento oficial diz que objetivo principal desse espaço será ‘capacitar’ e ‘qualificar’ o povo para participar dos debates. O povo brasileiro, os movimentos sociais e sindicatos não precisam ser qualificados: já somos. E sabemos o que queremos”, pontuou Edson.
Atualmente, 35 entidades nacionais participam da construção do Fama, que conta com organizações de outros 13 países: Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Costa Rica, Espanha, Estados Unidos, Holanda, Itália, Palestina, Paraguai, Peru e Uruguai. “Queremos que o Fama seja efetivamente um fórum internacional. Teremos a participação de entidades que lutam contra a mineração, contra a exploração das águas subterrâneas, contra a privatização do saneamento. Inclusive entidades do movimento sindical internacional, como o PSI [sigla em inglês para Public Services International] que tem divulgado estudos que mostram a tendência de reestatização de serviços de saneamento em várias cidades do mundo inteiro”, explica Edson.
De acordo com ele, tão importante quanto a realização do Fórum Alternativo é o processo que antecede o Fama. Nesse sentido, já foram criados comitês locais de discussão nos estados da Paraíba, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Piauí. “A ideia é que os comitês continuem funcionando mesmo depois do Fama como espaços de mobilização, formação, luta e resistência pela soberania nacional contra a mercantilização da água”, diz Edson.
No Dia Mundial da Água, 22 de março, os organizadores querem colocar três mil pessoas nas ruas de Brasília. “Faremos uma grande marcha para que todos aqueles que participam do fórum corporativo vejam que o verdadeiro espaço de discussão é com o povo, com os movimentos sociais”, anunciou Daniel.
Conjuntura brasileira
O Fórum Mundial das Águas e o Fama acontecerão num contexto de privatizações no saneamento e no setor elétrico brasileiros. “Estamos vivendo um golpe institucional que retira direitos dos trabalhadores e está acelerando a entrega das nossas empresas públicas para o setor privado. E a palavra é entregando. Não se trata de uma venda. A Eletrobrás tem 47 usinas hidrelétricas que estão no pacote. Estão pedindo R$ 20 bi para a venda de todo o sistema. Muitos estudiosos avaliam que a empresa vale quase R$ 400 bilhões. Estão querendo vender 47 usinas pelo preço de uma”, critica Liciane Andrioli do MAB. E completa: “Não é à toa que as corporações vão realizar um Fórum em 2018. Mas nós vamos estar lá para fazer a denúncia de todo o processo de entrega da nossa soberania nacional. As privatizações que estão acontecendo, como a venda da Eletrobrás, são parte de um projeto global que tem como centro a água e a energia”.
Edson Aparecido chama atenção para possíveis mudanças no marco legal do saneamento que favorecerão o setor privado [leia mais aqui]. Ele cita duas leis – a 11.107 de 2005 e a 11.445 de 2007 – que poderão ser modificadas, em breve, por medidas provisórias do governo Michel Temer. “Hoje a legislação nacional de saneamento tem vários mecanismos que dificultam o processo de privatização. A 11.107 tem um artigo que criou o contrato de programa. Parece que isso não é importante mas é. O contrato de programa permite que a prefeita entregue o serviço de seu município para a companhia de saneamento estadual sem ter que fazer licitação para a iniciativa privada. Eles querem acabar com isso para que o município seja obrigado a fazer consulta ao setor privado para ver se alguma empresa tem interesse em operar o serviço”, explica. Segundo ele, essas mudanças são complementares ao Programa de Parcerias em Investimento (PPI), que prevê a privatização das companhias estaduais de saneamento.
Fonte: Por Maíra Mathias – EPSJV/Fiocruz