O coronavírus, a barbárie e a força do Cerrado
por Leonardo Melgarejo*
Teria sido a Covid-19 criada em laboratórios chineses ou em laboratórios norte-americanos, como arma de guerra e com fins geopolíticos? Teria surgido na China, ou teria sido levado para China, por soldados norte-americanos, por ocasião de jogos militares?
Seria fruto de mutação natural em patógeno adaptado a animais silvestres, em função de sua criação em cativeiro, para consumo humano? Aparentemente esta hipótese é a correta, colocando a possibilidade de estarmos diante de um comportamento frequentemente observado na natureza, no qual controles biológicos são ativados para regular o crescimento desordenado de populações que ameaçam o ecossistema.
Se trataria, neste caso, de resposta natural a pressões homogeneizadoras do ambiente. Essas, restringindo as possibilidades de equilíbrio ecossistêmico, exerceriam pressões seletivas que resultariam na emergência de mutações tendentes à interrupção de algo que, em termos amplos, poderia ser interpretado como processo degenerativo.
Como exemplos recentes poderíamos listar patógenos causadores do mal de sigatoka (Mycosphaerella musicola), em bananeiras do Panamá, da ferrugem asiática na soja (Phakopsora pachyrhizi) e a requeima nas lavouras de batata (Phytophthora infestans) e do cancro cítrico (Xanthomonas citri), entre outros.
A manifestação de fenômenos desse tipo costuma ocorrer em função da confluência de pelo menos três fatores: surgimento de agente patogênico, a que se faz exposta uma população suscetível, em ambiente favorável à disseminação da doença. Por isso, enquanto a Covid-19 avança em ambiente favorecido pela irresponsabilidade do centro de governo, contando com a fragilidade imunológica de uma população amontoada em condições precárias de saneamento, desnutrida ou mal alimentada por questões de renda, educação e desorientação nutricional – com preferência a fast-foods, alimentos ultra processados e com resíduos de agrotóxicos -, fica evidente que todos serão afetados e que os impactos socioeconômicos reverberarão por décadas. Jamais seremos os mesmos, e não há tempo a perder.
Agora interessa mais saber como aumentar a imunidade das pessoas e que áreas devem ser protegidas prioritariamente, dos avanços da pandemia. A lição chinesa não deve ser esquecida: lá, a mortandade foi controlada pelo isolamento de uma cidade com 11 milhões de habitantes, somada ao isolamento de uma região com 60 milhões de habitantes.
Isto só foi possível porque as outras cidades, e as demais regiões da República Chinesa, protegidas pelo isolamento dos territórios afetados, produziram os recursos, os alimentos, os serviços e os equipamentos que viabilizaram o controle do vírus, nas áreas isoladas. A solidariedade, o planejamento e a disciplina, orientados com racionalidade voltada ao bem da maioria, permitiram vencer o drama, independente de sua origem, garantindo igual valor e respeito à vida de todos. O custo foi enorme, até aqui mais de 3.300 mortos (Fonte: BNO News), mas gerou ensinamentos que poderão salvar milhões de vidas ao redor do mundo.
Aprendizados para o Brasil
Que orientações devemos retirar destes fatos para adoção em nosso país gigante, onde a concentração de renda e a submissão do governo a interesses de transnacionais assegura que, com exceção da garantia de morte, poucos critérios se aplicam da mesma forma, a todos os brasileiros?
Aqui, onde a concentração de renda, a injustiça social, o desemprego, o abandono e a exclusão dos mais pobres, são abissais, a Covid-19 chegou por via aérea, trazida por passageiros que retornavam de voos internacionais. Assim, neste momento em que os agravos se concentram no litoral e no centro sul, e algumas estimativas de perdas superam as centenas de milhares de óbitos, assusta o fato de que o país ainda não se dedica a atender os grupos fragilizados pela desnutrição, pelo abandono, pela ausência de serviços de saneamento, pelo consumo de água e alimentos com resíduos de agrotóxicos, pela necessidade de discriminar entre o potencial contributivo dos diferentes territórios e seus habitantes, e pela urgência de mobilização nacional em apoio a uma estratégia de longo prazo, para superação da crise.
Tolamente, o presidente Bolsonaro, após desmontar políticas públicas, expulsar médicos cubanos, desativar centros de pesquisa e conselhos de articulação social, desmerece orientações da OMS, entra em debate com governadores e estimula a livre circulação de pessoas, acelerando a dispersão da Covid-19, ao mesmo tempo em que hospitais de campanha e Unidades de Tratamento Intensivo são montados nas grandes capitais, equipamentos mínimos fundamentais para a ação dos serviços médicos, e aqui inexistentes, são importados às pressas.
Estádios de futebol são ocupados e caminhões frigoríficos são preparados para carregar os mortos. As famílias são alertadas para não comparecer aos velórios de seus amados, para lavar as mãos, para se alimentar de forma adequada, e esperar o pior, que está anunciado, pelo Ministro da Saúde, para ocorrer a partir de meados de abril. E estes são os pontos a que devemos atentar: de onde virão os alimentos? Até quando vivenciaremos o caos? Que país resultará disso tudo, para as próximas gerações?
A força do Cerrado
Paradoxalmente, os povos e comunidades tradicionais, os agricultores familiares de todas as regiões do Brasil, se protegidos do vírus, podem não apenas manter suas vidas como ainda fornecer a solução para o problema nacional da fome. Se desassistidos, tenderão a morrer em massa, tão logo a Covid-19 chegue aos rincões mais ermos do território nacional.
Porém, com o apoio de um governo responsável, aqueles brasileiros, a partir de seus espaços de vida, poderão impulsionar nossa retomada em direção à condição de liderança internacional que parecia reservada ao Brasil, quando para o então presidente, os povos e comunidades do interior, os pobres e os famintos de cidadania, nos campos, nas águas, nas florestas e nas cidades, uma vez mobilizados como protagonistas ergueriam nestas terras uma república forte, unida e solidária respeitada por todos os povos do planeta.
Esta situação, na qual crise horrenda e oportunidade luminosa se aproximam, resulta mais clara quando olhamos para a região do bioma Cerrado. Ali, onde a densidade populacional é rarefeita, e onde o agronegócio vem cometendo ecocídios sem precedentes, onde transnacionais e seus representantes locais desenvolvem um modelo de agricultura predatória, que envenena o solo, as águas e acoberta assassinatos de indígenas e lideranças campesinas, pode estar a alternativa de que dispomos, para adotar no Brasil, ainda que tardiamente, uma versão tupiniquim da estratégia chinesa.
Isto porque o Cerrado é verdadeiramente especial. Trata-se do bioma mais antigo e o segundo maior, em extensão e biodiversidade, do Brasil. São 730 mil quilômetros quadrados, onde habitam 46 milhões de pessoas, em sua maior parte historicamente adaptadas às condições locais. Recentemente incorporado à exploração pelo agronegócio exportador de commodities, o Cerrado vem sendo destruído pelo avanço das monoculturas de soja, algodão e cana, com o uso intensivo de venenos, com mortes e expulsão de populações, com drenagem de fontes e incêndios criminosos, em processo que se assemelha ao acima comentado.
Trata-se de avanço rumo à catástrofe porque o Cerrado não apenas corresponde à savana mais biodiversa do planeta, com milhares de espécies que só existem ali, como também assegura o ciclo das águas fundamental à vida no Brasil e em países vizinhos. Ali estão as nascentes que alimentam seis das oito grandes bacias hidrográficas do país, bem como três dos principais aquíferos da América do Sul (Bambui, Urucuia e Guarani).
Ademais, a realimentação dos chamados rios voadores, que transferem umidade da Amazônia para o centro sul, dependem do Cerrado. Ali vivem mais de 80 etnias indígenas, quilombolas, ribeirinhos, vazanteiros, pescadores, raizeiras, quebradeiras de coco e outras formas de vida comunitária, reunidas sob a designação de Povos e Comunidades Tradicionais, que desenvolvem práticas solidárias e atuam, ao preço da própria vida, como verdadeiros guardiões do Cerrado.
Se protegido, o Cerrado, o berço das águas, pode claramente alimentar o Brasil e fornecer excedentes para superar crises de fome no resto do planeta, ajudando a superar a crise da pandemia provocada pelo avanços da Covid-19. Basta ver suas condições naturais e refletir a respeito que já acontece em territórios onde, com escasso apoio institucional, a soberania alimentar e a produção de base agroecológica estão assumidas como prioridade. Trata-se apenas de colocar os direitos e necessidades humanas em seu real patamar, mobilizando os recursos naturais do país, com vistas ao bem estar da população.
Agroecologia
A produção limpa, de alimentos sadios, pode efetivamente ampliar o sistema imunológico, minimizando a gravidade de boa parte dos casos infecciosos, com impacto positivo redutor da necessidade de leitos hospitalares e, em consequência capaz de minimizar a dor do transporte de cadáveres, em caminhões refrigerados até enterros coletivos.
A mobilização dos povos do cerrado, e de outras regiões com características similares, no sul, norte e nordeste, associada à políticas de estímulo às formas de solidariedade ali já estabelecidas, exercerão efeitos pedagógicos, com potencial real para construção de um novo país, superando as injustiças e preconceitos que cimentam nossa história.
Neste sentido, a decisão do governador de Goiás, golpista de primeira hora, quando este contrariou o atual presidente, que foi eleito com seu apoio entusiasmado, tratando agora, na oposição a Bolsonaro, de impedir o livre trânsito de pessoas para seu Estado, é correta. Deve ser valorizada e estendida a todo o centro-oeste, de maneira a permitir que o Cerrado, em se mantendo território livre do coronavírus, se torne a fonte dos alimentos que serão necessários ao longo deste e dos próximos anos.
As lavouras de soja, algodão e cana, uma vez colhidas, devem ser substituídas por áreas voltadas a produção de alimentos com ocupação da mão de obra excluída do campo, naquela e em outras regiões do país. Os territórios indígenas e quilombolas devem ser regularizados. Os Povos e Comunidades Tradicionais em sua amplitude, devem ser reconhecidos e mobilizados como protagonistas dessa transformação.
Uma ampla reforma agrária, voltada à produção de alimentos limpos deve ser implementada já, em esforço de guerra, tomando como base experiências bem sucedidas não apenas no Cerrado como de resto, em todas as áreas ainda não afetadas pela Covid-19.
Por suas peculiaridades, ainda que fundamental, o Cerrado não deverá ser mobilizado como instrumento isolado. Ele se apresenta como a mola propulsora de nosso futuro mas, adicionalmente, todos os assentamentos de reforma agrária devem ser ativados com igual perspectiva, todas as áreas de ocupação coletiva, com povos e comunidades tradicionais, devem ser regularizadas, todos os agricultores familiares devem ser convocados e apoiados por instrumentos de crédito, extensão rural e assistência técnica, bem como por políticas de ligação campo e cidade, como o PAA a PNAE, o CONSEA e todas as formas de organização social. Trata-se de direcionar esforços do presente, com foco no drama imediato, animar a esperança e mapear um caminho sólido para o Brasil do futuro.
O povo e o país devem tomar as rédeas de nosso destino, para superação desta crise. Sim, isto implica em descartar aqueles agentes que operam a favor da pandemia, mobilizar os recursos nacionais e potencializar nossas capacidades coletivas, com a urgência e ênfase exigidas, de maneira a evitar a barbárie e a fome, entre as populações isoladas nas regiões urbanas. Medidas concretas neste sentido devem ser cobradas pela população, de imediato, antes que comecem os saques e se generalize o terror.
No centro oeste como um todo e no Cerrado em particular, territórios até aqui em franca desagregação pela ganância de poucos e em desprezo às particularidades da região e dos povos que ali habitam, ocultam-se potencialidades que, se chamadas a salvar o Brasil, responderão com a generosidade, o orgulho e a força que os caracterizam, devolvendo a todo país a confiança e que necessitamos para reconstruir o espírito republicano.
*Leonardo Melgarejo é engenheiro agrônomo, professor e pesquisador. Mestre em Economia Rural e doutor em Engenharia de Produção. É membro da Associação Brasileira de Agroecologia, colaborador da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.
Foto do topo: Andressa Zumpano/Acervo ActionAid Brasil
*Texto originalmente publicado no site do Le Monde Diplomatique Brasil