Às águas: gratidão, perdão, respeito e compromisso
Por Raquel Rigotto*
Convido hoje vocês a expressarmos nossa gratidão à Água! A começar pelos bilhões de mãos que ela tem lavado milhares de vezes nestes últimos dias, nos protegendo da contaminação pelo coronavírus. Pela sua presença em cada uma de nossas células e em nossos fluidos, sustentando a vida. Pelo contato úmido com as sementes, fazendo brotar os alimentos. Por ser o berço doce ou salgado de tantos seres que são a base de toda a cadeia alimentar. Por fecundar as florestas, correr na seiva das árvores e no sangue de todos os bichos que nela vivem. Por abrigar o sagrado nos rituais de povos indígenas, negros e brancos. Pelo encantamento dos rios, cachoeiras, lagoas e mares. Pelo mistério dos aquíferos. Pela generosidade de evaporar dos rios da Amazônia para voar pelas nuvens e presentear outros territórios. Pela fartura do Cerrado-berço das águas, que alimenta quase todas as regiões hidrográficas do Brasil. Por seus cantos. Por…
Precisamos também pedir perdão à Água. Com o coração consternado, voltamos de uma visita que fizemos esse ano a povos indígenas que vivem na bacia do rio Formoso, no Tocantins, bem próximo aos rios Javaé e Araguaia, na Ilha do Bananal. Um rio farto, caudaloso, rico em tantos e diversos peixes, que alimenta aquelas maravilhosas matas alagadas e há muito tempo é a base da vida dos povos que lá estão. Pois o que vimos foi um rio (e terra) escravizado. Parte dos mais de 1.400.000 hectares de área plantada com os monocultivos-commodities do Tocantins (soja, cana, arroz, milho) estão ali, violentando as águas do rio e roubando sua formosura. A mão e o poder dos fazendeiros barra as águas e as obriga a entrar por canais artificiais que vão até os seus cultivos para irrigá-los. Da barragem para baixo, toda a vida que há no leito do rio é queimada pelo sol e transformada em areia, onde as camionetes podem viajar, mas não os barcos dos ribeirinhos e povos indígenas. Piracema não há mais. Mas há os canais que trazem de volta o resto da água da irrigação do arroz para o rio, agora contaminada por venenos (são mais de 22 milhões de litros de agrotóxicos usados anualmente nestes cultivos no Tocantins): os peixes boiam mortos na superfície, as crianças adoecem nas aldeias, a vida se esvai…
É dessa captura/roubo das águas que vive o agronegócio, responsável por 67,1% da água consumida no Brasil. Segundo o Relatório da Agência Nacional de Águas publicado em 2019 [1], são 745 mil litros de água consumidos a cada segundo – o que uma família média no Brasil leva 19 anos para consumir!
Além disso, contaminam as águas dos rios e aquíferos: estudo realizado pela Universidade Federal do Mato Grosso [2] mostrou que, em Lucas do Rio Verde/MT, foram encontrados resíduos de agrotóxicos em 81% das amostras coletadas em quatro rios, principalmente endosulfan, flutriafol e metolacloro. Não é à toa que o agronegócio prolifera rapidamente no Cerrado, berço das águas do Brasil. E não é à toa que os dez municípios que mais consumiram agrotóxicos no Brasil (em litros, 2017) são também do Cerrado: Sorriso-MT (14,6 milhões), Sapezal-MT (11,1 milhões), São Desidério-BA (10,2 milhões), Campo Novo do Parecis-MT (9,1milhões), Nova Mutum-MT (9,0milhões), Formosa do Rio Preto-BA (8,1 milhões), Nova Ubiratã-MT (8,0 milhões), Diamantino-MT (7,6 milhões), Rio Verde-GO (7,3milhões), Campo Verde-MT (6,7milhões).
Contaminar as águas é também o que faz a mineração, outra vertente do modelo de desenvolvimento brasileiro. Foram 680 km de corpos d´água contaminados em Minas Gerais e no Espírito Santo, ao receber o despejo de 40 milhões de metros cúbicos de resíduos da mineradora Samarco S.A., subsidiária das mineradoras Vale S.A e BHP Billiton, em Mariana (MG). E mais Brumadinho, com quase três centenas de mortos pela irresponsabilidade das empresas com as águas por elas aprisionadas.
Por isso, mais um convite fica para todos nós no Dia Mundial da Água: quando a gratidão é genuína, e o pedido de perdão é profundo, eles podem se juntar para contagiar os outros com o nosso respeito às águas – honrá-las! – e para fortalecer o nosso compromisso com a luta em defesa de sua liberdade e de sua vida, que dá a Vida a todos nós viventes!
*Raquel Rigotto é professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do GT Diálogos e Convergências Águas/Abrasco/RBJA, além de ser colaboradora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Foto superior: Rio Corrente (BA), por Amanda Alves
[1] Agência Nacional de Águas (Brasil). Conjuntura dos recursos hídricos no Brasil 2019: informe anual / Agência Nacional de Águas. Brasília: ANA, 2019.
[2] Pignati WA et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 22(10):3281-3293, 2017. DOI: 10.1590/1413-812320172210.17742017