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AMEAÇADOS PELO AVANÇO DO CAPITAL, COMUNIDADES E MOVIMENTOS SOCIAIS LUTAM PELA PRESERVAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL

Dia Mundial da Água, celebrado dia 22 de março, é espaço para debater a importância da garantia do acesso a água de qualidade e saneamento básico a toda população

Por Rafael Oliveira

Em uma caminhada com dona Raimunda em sua roça, na comunidade camponesa Gleba Tauá, no município de Barra do Ouro, no Tocantins, ela conta que a água em seu território já foi muito abundante. As memórias da infância, de quando bebia água diretamente do córrego cristalino ou de quando brincava nas grotas, hoje disputam espaço com uma realidade diferente.

Em tom indignado, a senhora de quase 80 anos, nascida e criada na região, é enfática ao contar que depois da chegada da monocultura da soja e da criação extensiva de gado nos arredores da comunidade, a vida se tornou mais difícil de ser vivida em diversos aspectos. Além da devastação do Cerrado e da constante violência da pistolagem para ser expulsa de suas terras, dona Raimunda e sua família convivem há cerca de 20 anos com a destruição daquilo que é sagrado para a tradição camponesa: a água!

O veneno jogado por avião e por maquinário terrestre nas imensas lavouras de soja que praticamente avançaram até o terreiro de dona Raimunda já contaminou as nascentes e rios que cortam o território da Gleba Tauá, uma área da União que, atualmente, conta com outras cerca de 90 famílias camponesas. Em 2020, o Governo Federal aprovou o registro de 493 agrotóxicos, de acordo com relatório do Ministério da Agricultura. O número supera em 4% o registrado em 2019, quando houve a liberação de 474 tipos. Até fevereiro deste ano, outros 67 agrotóxicos foram autorizados a entrar no mercado brasileiro, conforme publicação do Ministério da Agricultura no Diário Oficial.

Dona Raimunda já perdeu as contas de quantos animais de sua criação já morreram após beberem a água de algum córrego. Denúncias nos órgãos ambientais e ao Ministério Público Federal não foram, até agora, suficientes para frear essa prática que adoece a biodiversidade e as pessoas que ali habitam.  A comunidade de Tauá, devido as queimadas de 2019,  teve apoio emergencial da CESE/HEKS para reconstrução da casa de farinha

Água é um direito humano

A garantia ao direito à água é prevista mundialmente em Resolução da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2010. De acordo com o documento, reconhece-se “que a água potável limpa e o saneamento são essenciais para a concretização de todos os direitos humanos. A Resolução apela aos Estados e às organizações internacionais que providenciem os recursos financeiros, contribuam para o desenvolvimento de capacidades e transfiram tecnologias de modo a ajudar os países, nomeadamente os países em vias de desenvolvimento, a assegurarem água potável segura, limpa, acessível e a custos razoáveis e saneamento para todos”.

Na Ilha da Maré – próxima a Salvador (BA) -, onde vivem cerca de 10 mil pessoas organizadas em 11 comunidades quilombolas que têm na pesca artesanal seu principal meio de vida, a resolução da ONU nunca passou perto. “Nós sofremos um racismo ambiental e estrutural muito grande. Ficamos muito próximos à capital, mas o poder público não enxerga a gente. São diversas gerações que viveram e vivem aqui e até hoje não temos saneamento. Água e energia chegaram há pouco tempo. Eu estou com 50 anos e eu vivi isso a minha vida toda, imagine meus pais, minhas avós, minhas bisavós”, indaga Marizelha Lopes, liderança da comunidade e do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP/BA).

Apesar de estar envolta de água, a comunidade de Marizelha já não desfruta daquilo que outrora lhe garantia fartura. Desde a década de 50, a região é tomada por grandes empreendimentos que quebraram o equilíbrio natural do território. “A menos de 2 km daqui há uma refinaria e o Porto de Aratu. Nós ficamos no fundo da Baía de Todos os Santos e o vento que nos favorece em alguns momentos, em outros concentra a contaminação vinda desses empreendimentos. Muita gente na comunidade está com problemas sérios de alergias crônicas, problemas de pele e, principalmente, câncer”, relata a liderança.

Atualmente, uma nova obra de infraestrutura que já afeta diretamente a Ilha da Maré está em fase de construção, da qual é responsável a companhia Bahia Terminais S.A. Mesmo com decisão judicial suspendendo a construção de um terminal portuário na região de Ilha de Maré, a empresa mantém equipe e maquinário destruindo parte do manguezal remanescente do território.

“Em plena pandemia, em setembro do ano passado, destruíram mais de 1 hectare de manguezal. Quando soubemos, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) tinha licenciado esse projeto da empresa Bahia Terminais. Isso é fomentado pelo governo do Estado”, recorda Marizelha, que também afirma ter denunciado ao Ministério Público Estadual a continuidade das obras irregulares.

Abraço simbólico em defesa do Rio Arrojado, em Correntina/BA – Missão Ecumênica ”Pelas Águas do Oeste da Bahia”

Bem comum

A violência contra os mananciais de água, rios, córregos e nascentes vai além do envenenamento com agrotóxicos ou da construção de grandes obras de infraestrutura. Na avaliação de Andreia Neiva, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o processo de privatização das águas em curso no Congresso Nacional por meio da aprovação do Projeto de Lei (PL) 4.162/2019, chamado de “novo marco do saneamento”, é uma ameaça principalmente às famílias socialmente mais vulneráveis.

Este PL prevê entregar à iniciativa privada o controle de todo o setor de saneamento do país, além da apropriação das reservas naturais de água no território brasileiro. “Essa é uma preocupação muito grande. Se hoje já é uma grande desigualdade o acesso à água no Brasil, a tendência é piorar. [As empresas privadas] Não vão querer ampliar estrutura e redes de abastecimento e saneamento em lugares que não oferecerem lucro”, aponta Andreia. De acordo com relatório de 2019 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada no Brasil.

Na última quarta-feira (17), o Congresso manteve o veto do Governo Federal ao artigo 16 do PL, que previa a prorrogação dos contratos já existentes pelos próximos 30 anos. Se mantido este artigo, a luta contra a privatização das águas ganharia mais fôlego na tentativa de reverter o projeto, mas 292 deputados votaram a favor do veto, vencendo outros 169 votos contrários. “O que defendemos é água como um bem para o povo. Que seja gerido pelo poder público, mas que tenhamos participação, só assim é possível garantir a soberania de um povo. A água não pode e não deve ser transformada em mercadoria”, pontua a militante.

Pela preservação do sagrado

Quando não vista como uma mercadoria que pode ser dominada, explorada e comercializada como um produto qualquer, a água transborda elementos subjetivos, afetivos, espirituais, culturais e religiosos que vão além da compreensão do capital.

Tida como sagrada pelas comunidades tradicionais, a água implica diretamente na identidade e na existência de um povo.

“Essa relação, que é ancestral, profunda, com as águas e o manguezal, a gente sente quando vê sendo destruído. Não dá para desassociar a natureza da gente. Não dá para enxergar o meio ambiente sem nós, que somos os guardiões dele”, afirma Marizelha Lopes.

Nesse contexto, há ainda um importante ponto a ser considerado: o feminino e o papel fundamental da mulher, tanto no que se refere à manutenção da riqueza natural e a conexão direta das mulheres com as águas, como ao papel central que elas ainda desempenham no dia a dia das famílias.

Sobre isso, Andreia chama atenção de que “nas comunidades rurais, onde não há acesso a água encanada, a tarefa de abastecer as residências, dos cuidados diários da casa, é das mulheres. São elas que percorrem longas distâncias para pegar água para lavar roupa, fazer comida e limpar a casa. É uma carga muito pesada. São diversas violações de direitos das mulheres tanto na cidade como no meio rural, e isso tudo é invisibilizado”.

Para a quilombola Marizelha, em meio a um contexto tão desfavorável, há pouco o que comemorar no Dia Mundial da Água, celebrado nesta segunda-feira (22). “Estamos preocupadas com tanta intervenção, contaminação. A casa de Iemanjá nunca esteve tão suja. Todo ano é um crime ambiental causado por essas empresas”, protesta. Ainda que não tenha o que celebrar, ela afirma que há muita luta a se fazer. “Temos esperança em nós, tanto que no dia das águas faremos um ato contra esses empreendimentos. Nós nos pegamos na força das águas, dos orixás, dos encantados, na natureza. Eu acredito muito que a natureza vai reagir”, conclui.

Diante desse cenário de injustiças, a CESE reafirma seu compromisso pela defesa e garantia da água como direito humano fundamental e apoia iniciativas do movimento popular em defesa das águas. As falas de Dona Raimunda, Marizelha Lopes e Andreia Neiva, lutadoras populares e guardiãs desse bem tão precioso para toda a humanidade nos dão energia e alimentam nossa esperança num mundo mais justo e no Bem Viver.


Texto originalmente publicado pela CESE - Coordenação Ecumênica do Serviço

Imagens: Acervo CESE

Povos e comunidades, Águas