Povos indígenas permanecendo em aliança nas fronteiras construídas sobre o Cerrado
Por Marcela Vecchione, Antonio Verissimo da Conceição, Laudovina Aparecida Pereira e Roberto Antonio Liebgott
Em tempos de ameaças praticadas pela pressão de marcos temporais[1] criados e negociados vorazmente por setores do hidro-agro-minero-negócio, a brutalidade para limitar ou integrar os territórios de vidas indígenas a circuitos de produção e escoamento segue ocorrendo, como sempre foi no Cerrado desde o século XVIII. Estes setores, decerto, não aderiram à quarentena. Célia Xakriabá, liderança do povo Xakriabá no Norte de Minas Gerais, chama atenção a que os avanços econômicos são de “monoculturação” do território, do corpo e do espírito, adoecendo os povos, e impedindo sua diversidade de viver, o que compromete a sobrevivência do e no Cerrado. “Somos raízes, mas, principalmente somos sementes”, diz Célia, que também é da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). O impedimento de que a sobrevivência consorciada ao ‘sementear’ dos povos indígenas no Cerrado seja exercitada compromete planos de vida, impedindo que este continue a ser sociobiodiverso.
Tocando e entoando a sociobiodiversidade do Cerrado, Elza Xerente, liderança do povo Xerente no Tocantins, denuncia o apagamento das pluralidades do existir de seu e outros povos do Brasil Central, falando forte, ao chacoalhar o espírito: “estão matando o povo, o rio, os bichos; está tudo secando (...) estão matando a gente.” Essa morte matada se repete em episódios de genocídio contínuos[2], como os esbulhos e usurpações dos territórios indígenas no Brasil Central descritos anteriormente. O processo colonizatório fez aldeamentos e estimulou guerras entre povos rivais, impondo-se aos arranjos diplomáticos já existentes entre esses povos para se espalharem, ocuparem e se relacionarem com e nas várias paisagens do Cerrado a fim de continuar convivendo. As trocas de sementes, que envolvem troca de fazeres da lida com a terra e as águas, de utensílios, e a construção de extensas redes de parentesco marcando a dominialidade vivida dessas paisagens, constituindo-as, foi e ainda é, em menor escala, marca do processo de convivência intercultural no Cerrado.
Nessa imensa região macroecológica que domina o Brasil Central, também predominam o tronco linguístico Macro Jê e os muitos povos indígenas que se relacionam, e se diferenciam, pelo diferente manejo desse tronco tão ligado aos conhecimentos da terra e às palavras-verbo que denotam a relação com ela. A colonização acabou trazendo possibilidades de aliança com os povos do tronco Macro-Tupi. O povo Xerente de Elza, autodenominado Ak’we, faz parte da grande família Jê Central, parentes próximos dos Xakriabá, povo de Célia, que habita a conexão entre o Cerrado e a Caatinga, e os Xavante, muito presentes no Nordeste do estado do Mato Grosso, onde se desenha a transição com a Amazônia.
As histórias de resistência e permanência dos povos Jê e Tupi-Guarani no Brasil Central têm uma relação muito forte com as frentes de expansão e como os “brancos” — a Coroa Portuguesa, a República e o Estado, ditatorial ou democrático de direito, e o capital transnacional — foram transformando esse espaço em sua zona de exploração, gerando espoliação e intensa acumulação, à medida que — e necessariamente porquê — desumanizavam esses povos, desqualificando seus modos de existir. A ‘fronteira’ agrícola expandiu ao passo que dividiu povos, terras e tentou forçosamente descontinuar paisagens onde as relações se davam, zoneando-as na expansão econômica e física com base em racismo e colonialidade.
De outra forma, mas, sob as mesmas bases, a fronteira se reinventa e continua secando rios e matando povos, como nos conta Celia Xakriabá: “Nós precisamos é queimar o racismo, nós precisamos é queimar o fascismo porque isso, sim, é a fronteira. A fronteira não é exatamente do Cerrado para outros biomas. A fronteira é o racismo ambiental, a fronteira é o racismo que continua amputando, arrancando nossos corpos. A fronteira é aquela que diz que os povos indígenas estão se tornando mais humanos, mas, só sabe ser humano quem sabe ser bicho, quem sabe ser semente, quem sabe ser Cerrado.”
Territorialidade cercada e degradada: a r-existência dos Xerente
Essa fronteira, que seca a vida e afeta os povos, limita os Xerente desde que foram contactados nos anos 1940, uma década de intensa colonização do Cerrado, quando o Sistema de Proteção ao Índio (SPI) era o órgão do Estado brasileiro responsável por ‘integrar’ os indígenas. O objetivo era ‘marchar’ numa grande expedição rumo ao Oeste do Brasil, levando ‘progresso’ e estrutura para as antigas sesmarias serem novos latifúndios agroexportadores, e liberando áreas para planejar a modernização agrícola aliada ao ‘povoamento’ do país. Desde essa época, a terra nunca mais foi a mesma para os Ak’we Xerente que já povoavam intensamente a margem direita do rio Tocantins.
Até os anos 1980, eles sofreram com a dizimação do povo por causa de epidemias de gripe. As terras e os rios começam a ‘secar’ mais intensamente, como aponta Elza, muito por causa do que foram fazendo ao Cerrado. Em 1972, é decretada a “Área Grande” dos Xerente, pelo Estado brasileiro, embora bastante degradada. Contudo, quando em 1988, o Norte do estado do Goiás se transforma em estado do Tocantins, muitos municípios vão se formando ao redor do território Xerente, cortando a área grande, já muito prejudicada, e pressionando seus modos de vida, especialmente pela construção de estradas para integrar os novos municípios, e suas produções, à capital, Palmas. As estradas passaram a cortar a Terra Indígena e a produzir imensos problemas para as comunidades que, em 1992, tiveram outra área demarcada e reconhecida, a Terra Indígena Funil, sem ser em contiguidade à antiga área, embora fosse próxima.
Em 1999, o rio e o território, já cortados pelo município de Tocantínia e pela estrada TO-010, começam a secar e a comprometer os modos de vida indígenas ainda mais. Neste ano, é aprovada a construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Lajeado, parte do programa Avança Brasil do Governo Federal de integração de eixos e polos de desenvolvimento regional no país. Como disse Elza, parecia que a UHE está “saindo fora e não está no território indígena” que, por isso, não seria afetado, mas, ainda que diferente das estradas que cortam o território, a UHE compromete a água que, por sua vez, compromete os peixes, o solo, as vazões. Tudo interligado e bloqueado pelo bloqueio do fluxo do rio que se soma ao aumento de atividades externas do fluxo da estrada, que teve a pressão aumentada pelo asfaltamento depois da hidrelétrica. Elza nos fala da TO-010 que corta a TI: “esses projetos todos são que nem o Lajeado, que acabou com a vida dos Xerente”, e acrescenta: “projetos estão acabando com Cerrado, acabando com a vida, os rios estão morrendo e pedindo socorro para defender. (...) Os povos indígenas sentem quando está triste e silencioso. Conversam com o rio, com a floresta, com o Cerrado.”
Inaugurada em 2005, a UHE Lajeado[3] alterou profundamente os modos de vida Xerente, multiplicando o número de aldeias para a recepção do Programa de Compensação Ambiental Xerente (PROCAMBIX), aumentando o fluxo e quantidade de moradores em municípios vizinhos e, especialmente, a invasão das terras por grileiros em resposta à especulação fundiária na região, também estimulada pela construção de estradas. Com o início do projeto da Hidrovia Tocantins-Araguaia, há a previsão da construção de um canal a apenas 12 km da TI Xerente, para o transporte de grãos e minérios, o que vai levar ainda mais secura e perturbação da vazão do rio às comunidades.
“Nós trabalha não é para mandar para fora, não. Nós quer é trabalhar para sobreviver”, destaca Elza Xerente, marcando que o povo não quer asfalto porque sabe que não tem benefício para eles. Elza diz que o que os povos indígenas querem é a terra e o rio, querem o território, para trabalhar e seguir vivendo. Elza ainda insiste que “tem que respeitar ribeirinho que não é indígena, os acampamentos” porque o “trabalho é para se alimentar, não é para transportar para outro país, não. Nós trabalha para sustentar a família. Não é para passar dos limites. Se a gente tira um pedaço aqui é para sustentar a família.” Por isso, defender o território é tão importante, porque se trata da defesa da vida indígena. Com firmeza, Elza nos reforça que os povos indígenas “nunca tiraram os direitos dos seres humanos. Não somos invasores. Somos donos do Brasil e até hoje defendemos a natureza. Nossos antepassados não nos ensinaram a tirar pedaço através do dinheiro.”
“Monoculturação” da terra e da vida: colonialidade persistente
O esforço por tornar os indígenas do Cerrado mais ‘produtivos’ e integrados, ou, simplesmente, “mais humanos”, como aponta Célia Xakriabá, faz parte do apagamento de seus modos de vida pelo processo de acumulação capitalista de suas terras. Isso remete muito ao que seja uma ideia de modernização conservadora da agricultura, do agronegócio, com base em eficiência e produtivismo, necessitando de grandes extensões para o cultivo de poucas espécies. A “monoculturação” da terra e da vida, de que nos fala Célia, precisou, assim, da fronteira e do apagamento dos modos de vida e da desqualificação da diversidade produtiva e alimentar dos povos indígenas das terras baixas da América do Sul.
Classificados como caçadores e coletores e, como tal, inferiorizados como sociedades menos desenvolvidas nos estudos antropológicos colonialistas do século XIX, esses povos tiveram sua colonização assim justificada. Fazendo questão de ignorar que o hábito de habitar lugares, nem sempre de forma fixa, estava conectado a uma seleção de sementes e frutos, de caças sazonais ligadas a esses cultivos e suas coletas, que levaram ao cultivo de jardins, hortas e quintais móveis e aprimorados no território estendido que hoje conhecemos como Brasil Central, essa colonização classificou e hierarquizou a caça-coleta como atividade menor, e não agrícola. E não se trata apenas do período colonial português, mas da colonização e colonialidade persistentes em processos como a Marcha para o Oeste de Getúlio Vargas e, mais tarde, a modernização conservadora da Ditadura Empresarial-Militar. Assim, abriram-se literalmente as porteiras para instalar empreendimentos monoculturais, apagando práticas de reprodução social sofisticadas, embora simples. Não há coleta e caça indefinida, sem planejamento.
A mobilidade e as migrações pelo grande território central da América do Sul implicaram em uma seleção delicada do que se comia, do como se tirava, do que se plantava e se manejava, bem como implicaram na seleção das moradas que se estabeleciam extensivamente desde esse processo e, não, o contrário. Assim, ser caçadores e coletores levou os Xerente, os Xavante, os Xakriabá, os Apinajé ou os Guarani e Kaiowá a manejar estas práticas como seus instrumentos de vida, sendo muito mais atos de fazer o território extensivamente para bem viver com ele, do que dominar, delimitar e explorar o território para mais valer dele, como faz o agronegócio.
O território se cultiva. O silêncio que se percebe quando se conversa com o Cerrado, como diz Elza Xerente, é o silêncio que mostra como sua vida está ameaçada. “A natureza tem vida que nem o ser humano e pede para nós defender. Se acabar com os frutos do Cerrado, como vamos nos alimentar? Vamos passar fome. Todo mundo tem o direito de viver. (...) Essa pulverização aérea está acabando com a vida dos povos indígenas.”
[1] O marco temporal é um argumento jurídico levantado por deputados e senadores, em sua maior parte presentes na CPI FUNAI-INCRA e nos relatórios referentes ao Projeto de Emenda Constitucional 215, de que as terras tradicionais mencionadas no Art. 231, seriam apenas aquelas onde houvesse a presença de povos indígenas até a data da promulgação da Constituição, em outubro de 1988.
[2] Esbulho Renitente são as usurpações, deslocamentos e espoliações das terras indígenas ocorridas ao longo do processo de sobreposição e intervenção sobre as mesmas ocasionadas pelo Estado ou por entes privados, provocando assim o impedimento da realização do direito originário de tradicionalmente ocupar a terra.
[3] A UHE Lajeado é administrada pelo Consórcio EDP, liderada pela empresa de energia Investco S.A. Do consórcio, saiu o Programa de Compensação Ambiental Xerente (PROCAMBIX), que causou várias desestruturações na forma organizativa espacial no território desse povo.