Povos Indígenas do Cerrado: Territorialidades e modos de vida cercados pela fronteira permanente
Por Marcela Vecchione, Antonio Verissimo da Conceição, Laudovina Aparecida Pereira e Roberto Antonio Liebgott
Na toada do maracá, o tempo de habitar e viver não tem tempo marcado para acontecer. Acontece ao longo dos séculos, de um lugar a outro, embalado na relação entre os parentes Jê, e entre os parentes Tupi[1], no caminho à margem do rio, nas veredas vazadas em tempo de verão na planície, levando a campos e sertões, envolvidos por serras e chapadas. Caminhos que se construíram em estradas de árvores plantadas ou deixadas a crescer, sombreando e marcando o trânsito para as roças, enquanto outras foram transformadas em toco, cuidadosamente queimadas para dar força às raízes, palmeiras, frutos e arbustos para ser alimento, moradia, ritual.
São elementos essenciais para a autonomia e soberania indígena sobre suas vidas. Impressas no ritmo dos tempos estudados e praticados na troca de povo com povo — e também na briga entre povos, embora em aliança com a construção da paisagem. Ensinados e aprendidos de família a família; de geração a geração. Parentesco ativo e vocacionado nos encontros e assembleias: “Boa noite, parenta e parente (...) Resistimos e Existimos, parentas!” O chamado dos povos tem afeto e compromisso de proteção no presente com o que esteve no passado. História permanecendo no agora para ser futuro soberano e coletivo por meio de luta.
No toque da resistência para permanecer na terra, povos indígenas que vivem e cultivam a diversidade do Cerrado mostram que os anos de existência por esse território tão rico e belo, além de serem de convivência, são práticas ativas de cultivo e cuidado com a paisagem. Ainda que, muitas vezes, estes povos estivessem em condição de exílio de seus lugares de partida e surgimento, o refúgio em outros lugares acabou cultivando culturas de insurgência para permanecer o povo, as sementes e a comida, muito embora em situações trágicas de resistência.
São muitos anos de ciência do território que contribuem para que o Cerrado, ou melhor dizendo os cerrados, existissem e se construíssem como paisagens diversas. Por isso mesmo, é difícil confinar os fazeres e os saberes dos povos indígenas e seus territórios de existência a pequenos espaços, muitas vezes, ainda nem demarcados, já que nem 40% das Terras Indígenas (TIs) autodeterminadas no Cerrado são sequer declaradas pelo poder público. Ou ainda, quando o são, encontram-se encurraladas por atividades econômicas que impedem as possibilidades diversas de existência nessas terras tradicionalmente ocupadas[2].
A revivência desse processo excludente e de apagamento remonta ao século XVIII, quando avançaram violenta e rapidamente a colonização e as chamadas entradas[3] pela grande bacia hidrográfica integrada que compõe os rios Araguaia e Tocantins. As entradas seguiram o ciclo de interiorização da colonização pelo Brasil Central, primeiro pelo rio Araguaia, navegando pelos afluentes até onde possível, depois adentrando suas espraiadas várzeas a pé, utilizando as estradas de varadouro e as picadas de terra firme dos indígenas, e os encontrando quando ali faziam morada num território de muitos trânsitos e, portanto, mais extensivo e não tão delimitado como são as Terras Indígenas atualmente.
Ainda no século XVIII, indígenas Akroá Gamela e Awá Guajá, que hoje habitam a porção mais setentrional de transição do Cerrado à Amazônia Oriental foram deslocados violentamente, sendo muitos deles escravizados. Tanto os Akroá Gamela como os Awá Guajá[4], parte do tronco Macro-Tupi, fizeram-se valer de estratégias de sobrevivência, co-habitando territórios com outros povos, inclusive de outros troncos e famílias linguísticas, para resistir nas frestas do que estava sendo o “povoamento” dos brancos no Brasil Central pelos colonizadores. Em algumas situações, como ocorreu com os Gamela, esse “povoamento” branco, eliminando outros povos para se apropriar e extrair tudo o que se podia, inclusive trabalho, dos territórios, levou à perda da língua ou ao exílio, falsamente colocado como escolhido, a que se chama hoje voluntário, causado pela negação a sucumbir às brutais frentes de atração[5]. Esconder-se se movendo para outros lugares, apagar-se deliberadamente como povo em um determinado momento, foi a forma encontrada para se manter enquanto povo ao longo dos tempos, no futuro. Neste sentido, partiu-se para continuar a ser.
Os Akroá Gamela, devido às várias violências citadas, foram criando estratégias de miscigenação com povos Jê das chapadas centrais do que hoje conhecemos como Maranhão e Tocantins, como é o caso daqueles da família Timbira, tendo misturado suas línguas a fim de resistir à escravização e a seu apagamento enquanto povo, especialmente no que hoje é o Sul do Piauí. Mais contemporaneamente, no século XX, uma parte desse povo também passou a habitar área de intenso conflito na baixada maranhense, nos municípios de Viana e Matinha. No Cerrado piauiense, buscam (re)existir no munícipio de Santa Filomena. Já os Awá Guajá permaneceram no manejo da língua Macro-Tupi, exilando-se e isolando-se, em parcerias construídas com os indígenas da família Tenetehara, tais como Guajajara e Tembé, além de que com o povo Ka’apor, habitando a leste do rio Gurupi, no Maranhão.
Com os Avá-Canoeiro, havendo hoje um subgrupo desse povo considerado como de recente contato, a dispersão do Leste do Goiás e das chapadas mais ao meio do Brasil Central, significou busca por sobrevivência. Originalmente, deslocados da cabeceira do rio Tocantins, no Goiás, rumo ao Araguaia, os Avá-Canoeiro foram acometidos por processos de aldeamentos forçados, de guerras entre povos provocadas pelos colonizadores, e de privação de suas práticas de coleta e caça ou de agricultura. Esse tipo de “exílio” se reproduziu entre muitos dos povos Tupi no Cerrado (conhecidos como parte do fluxo Tupi-Guarani Norte). Parte deles teve que se isolar para não ser (ex)terminados ou pedir refúgio nas terras de outros parentes Tupi, por vezes entrando em processos de trégua e utilização de espaços territoriais com antigos inimigos Jê.
O triste e violento episódio continuado de extermínio dos Avá-Canoeiro retrata uma fragmentação causada no seio deste povo Tupi, começando no século XVIII, quando chegaram a se mover em busca de refúgio para vida autônoma até o Norte de Minas Gerais. O extermínio se acirrou na segunda metade do século XIX, tomando outro corpo de violência pelo Estado, e acelerando na segunda metade do século XX. A peregrinação, em seu início no século XVIII, foi marcada pela pressão sofrida pelas frentes colonizadoras do Goiás na cabeceira do rio Tocantins. Diante disso, esse povo passou a trilhar seu longo caminho de trânsito por deslocamento rio abaixo, pois preferiam a morte a serem aldeados. No final do século XIX, os “pioneiros” passaram a usar os Javaé (tronco Jê) para capturar e colocar em cativeiro os Avá-Canoeiro. Até então, esses dois povos eram inimigos, mas viviam em relativa harmonia, revezando-se na habitação e cultivo das várzeas dos rios Tocantins e Araguaia. Não havia movimento de dominação de um sobre o outro.
Neste momento, uma parte dos Avá-Canoeiro se negou ao domínio dos Javaé, em grande medida manipulados pelos bandeirantes, e voltou às cabeceiras do Tocantins. Outra parte adotou a estratégia de seguir e viver no território Javaé e Karajás, já negociado por esses povos com os bandeirantes, na Ilha do Bananal, em parte do que hoje conforma o Parque Indígena do Araguaia, e seguem lutando ao lado desses povos hoje na defesa da ilha como território tradicional compartilhado. Infelizmente, aqueles que voltaram às cabeceiras do rio Tocantins, foram atingidos na década de 1990 pela inundação de sua área ocasionada pelo complexo hidrelétrico da Serra das Mesas. Ficaram com um território (original) alagado pelo avanço da fronteira hidrelétrica. Os que foram para o Araguaia e começaram a compartilhar o território nos interstícios do rio Formoso na década de 1990, resistiram em um pequeno núcleo familiar, que se tornou trilíngue, dominando também a língua dos parente Jê – Javaé, Karajás e Kraho-Kanela –, criando estratégias de caça e coleta e de relações interétnicas para poderem sobreviver. Como acreditavam que poderiam voltar à terra original em sonhos ou em sua morte, a estratégia parecia uma forma de continuarem vivendo no presente, imaginando os futuros ao movimentar lugares sagrados por seus trânsitos de resistência e permanência, levando-os a novos lugares, na luta pelo reconhecimento de uma terra sua. Esta luta foi conquistada no processo de identificação da TI Taego Ãwa[6], na área de ocupação tradicional Mata Azul, em Formoso do Araguaia (TO). A terra, declarada em 2016, seguiu à homologação por determinação judicial, dada a situação de calamidade no que tange à soberania alimentar, enfrentada por esse povo indígena em 2018. Desde então, o processo no Supremo Tribunal Federal está suspenso.
A disputa que impede a TI Taego Ãwa de ser finalmente homologada envolve, justamente, uma das maiores áreas de planície alagada do mundo, compondo o maior
conjunto de várzeas fluviais contínuas existentes no planeta, que é a Ilha do Bananal. A área a ser homologada compreende ocupação de posseiros médios, enviados por grandes fazendeiros pecuaristas para a ilha, que hoje já tem quase 120 mil cabeças de gado nas pastagens naturalmente alagadas, comprometendo seus usos e manejo para outros fins, bem como contaminando as várzeas contínuas.
Os pecuaristas alegam que os Avá-Canoeiro[7] não são dali e que ali chegaram trazendo outros parentes do rio Tocantins, nos anos 2000. O que os pecuaristas querem ignorar é o exílio contínuo e constante desse povo por outras terras, habitando grutas, escondendo-se em cavernas — por isso, adaptaram-se às chapadas dos cerrados — e comprometendo sua alimentação pela impossibilidade da reprodução de seus modos de vida. Esse deslocamento-sobrevivência os levou, ainda na década de 1980, para o Nordeste da Ilha do Bananal, mais próximo ao Sul do Pará, ou por vezes compartilhando território com os Suruí (Aikewara) ou os Assurini do rio Tocantins também neste estado, mostrando-se exímios caminhantes e canoeiros da transição do Cerrado rumo à Amazônia. Ou seja, os Avá-Canoeiro (sobre)vivem às/nas fronteiras, enquanto se refugiaram em direção oposta ao seu avanço, ou rumo a espaços ora esquecidos, mesmo que momentaneamente, pela brutalidade que marca os deslocamentos pela fronteira[8], manejando o espaço e o tempo a seu favor sempre que possível.
[1] O Macro Jê e o Tupi são troncos linguísticos onde se inserem algumas das mais de 250 línguas indígenas que existem no Brasil. Um tronco é como se fosse o latim para o português ou para o espanhol, ou seja, de um tronco podem sair vários ramos, que são as famílias, que agrupam as línguas indígenas. No Cerrado, os povos Jê, do tronco Macro Jê, são a predominância demográfica e linguística da região.
[2] As terras tradicionalmente ocupadas são aquelas ocupadas pelos Povos Indígenas que se autodeterminam enquanto tais e que, portanto, autodeterminam quais são as suas terras. O Art. 231 da Constituição Federal reconhece estas terras como direito originário, competindo aos órgãos responsáveis apenas a característica declaratória desse reconhecimento, não sua determinação e definição.
[3] As entradas foram formas de colonização, aldeamentos e contatos.
[4] Parte do tronco Macro-Tupi, os Akroá Gamela e o Awá Guajá eram um dos povos mais numerosos do que passou a se chamar a Fronteira Araguaia-Tocantins nas frentes de expansão ainda no século XVIII. Historicamente, colocam-se ambos como parte da família Tupi.
[5] As frentes de atração ocorreram durante todo o século XVIII e XIX e foram imprescindíveis para as frentes de expansão se consolidarem territorialmente, usurpando o trabalho dos povos indígenas. Neste movimento, os colonizadores, pelas bandeiras, atraíam os indígenas das cabeceiras dos rios e dos interiores para descer o curso do rio (descidas), em combinação com o processo de adentrar o território (entradas), com negociações que, muitas vezes, envolviam povos rivais e a ação de catequizadores. Assim, aldeavam os indígenas e os escravizavam, quando não os assassinavam, incorporando-os à empresa colonial, seja no momento imperial ou republicano. Faziam isso, especialmente, quando impediam os trânsitos e as relações econômicas e sociais indígenas, que não eram de fixidez, impedindo, consequentemente, sua reprodução social.
[6] Para mais informações sobre a demarcação da TI Taego Ãwa, ver: Luciana Ferraz. Relatório ambiental da Terra Indígena Taego Ãwa. Brasília: Funai, 2012.
[7] Para mais informações sobre os grupos Avá-Canoeiro e seus trânsitos, ver relatório do processo de identificação da TI: Patrícia de Mendonça Rodrigues. Os Avá-Canoeiro do Araguaia e o Tempo do Cativeiro. Anuário Antropológico. 19 de fevereiro de 2018. Disponível aqui.
[8] Esse tipo de deslocamento é a marca da grande família Tupi-Guarani, que dominava a costa Atlântica quando esta foi invadida pelos portugueses. Os povos dessa família foram se refugiando desde esses contatos.