Cajueiro: após dois anos da violenta reintegração de posse, comunidade segue em resistência
A avó do menino Enzo (hoje com 13 anos) nunca retornou ao Cajueiro, na zona rural de São Luís, Maranhão, após o fatídico 12/08/2019. O trauma e o isolamento no qual o pré-adolescente mergulhou na época adoeceu a alma e coração da avó (que prefere não ter o nome revelado). Ele, naquele dia, retornava da escola e se deparou com a sua casa sendo destruída. Foi assim com mais 21 famílias naquela violenta e surpreendente reintegração de posse, realizada de maneira ilegal, pois a comunidade não foi avisada.
A família do Enzo, mais 21 famílias e outros moradores do território da Resex Tauá-Mirim foram vítimas de uma quadrilha que atua com grilagem de terra pública, dos poderes público e econômico, da pressão midiática praticada pelo Governo do Maranhão, da arbitrariedade da Justiça e da censura ao livre direito de se expressarem. Todos esses crimes e violações de direitos constam em processos que tramitam morosamente na Justiça Estadual do Maranhão.
As famílias seguem resistindo e renovando a esperança. Reportagem do jornal Valor Econômico publicada em junho desse ano informa que projeto de construção do porto privado do grupo transnacional chinês CCCC (China Communications Construction Company) e da TUP São Luís – antiga WPR São Luís Gestão de Portos e Terminais S/A, do grupo WTorre –, não saiu do papel mais de três anos depois de ter sua pedra fundamental lançada.
Orçada em R$ 2 bilhões há três anos e prevista para ser construída sobre o Território Tradicional Cajueiro, a obra nunca levantou o porto, mas já colocou abaixo dezenas de casas de moradores do território, provocou deslocamentos forçados das famílias, matou centenas de árvores, animais, destruiu cursos d’água e empobreceu os moradores que viviam da pesca, da agricultura e dos frutos das árvores do Cajueiro.
Um dos principais motivos da estagnação do empreendimento, segundo a reportagem, foi a falta de um financiamento de US$ 500 milhões pleiteado, mas não conseguido, pela CCCC, sócia majoritária do empreendimento, com 51% do negócio. O diretor-executivo da empresa no Brasil afirmou ao Valor que também estão enfrentando “uma série de questões fundiárias que atrapalham o projeto”.
Contra a lei
Em agosto de 2019, segundo matérias publicadas em mídias tradicionais, o Ministério Público Estadual do Maranhão (MPE-MA) apontava fortes indícios de que o imóvel vendido pela BC3 à empresa portuária TUP (Terminal de Uso Privado) Porto São Luís — antiga WPR São Luís Gestão de Portos e Terminais S/A, comandada pelo grupo WTorre — é “originário de um esquema de compra e venda de terra ilegal na região”. As investigações continuaram, mas passados dois anos, nenhuma outra denúncia foi apresentada à Justiça.
O caso segue também sob investigação conjunta do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas), Deca (Delegacia Especial de Conflitos Agrários) e 44ª Promotoria de Justiça Especializada em Conflitos Agrários, em inquérito sigiloso que apura a suspeita da prática dos crimes de falsidade ideológica e documental, corrupção ativa e passiva, usurpação de terras públicas, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Sem nenhuma indenização
As pessoas moradoras do Cajueiro que foram expulsas de seu território entre os anos de 2014 a 2019, até agora nunca receberam nenhuma indenização. Muitas nem conseguirem resgatar os seus pertences ou seus animais, como foi o caso de Manoel Campos. “Um absurdo que fizeram, meus cachorros não resistiram, foram levados para um local sem a menor condição de receberem cuidados. Acabaram morrendo”, afirmou.
A avó de Enzo, seu marido e outras 30 pessoas representando as famílias despejadas, se reencontraram em julho de 2021 na sede do Ministério Público Estadual para dialogarem com a Promotoria Agrária e a Defensoria Pública do Estado. Tanto o promotor Haroldo Brito, quando o defensor Marcos Patrício Soares Monteiro, falaram sobre a intenção da empresa fazer um acordo com as vítimas do despejo ilegal. O conteúdo da proposta do acordo não foi revelado, o que dificulta qualquer negociação. “É preciso que tenhamos informações sobre o contexto geral do processo civil e, principalmente, na esfera criminal. Não podemos negociar no escuro”, alerta o pescador e morador do Cajueiro Clóvis Amorim, que foi ameaçado de morte desde que passou a denunciar as violações cometidas no processo de instalação do porto privado.
Cemitério das Mães Palmeiras e a paralisação das obras
Durante o período pandêmico, o cemitério das Mães Palmeiras (como são chamadas as palmeiras de babaçu pelas quebradeiras de coco babaçu) vivenciou dias de silêncio. A área foi assim denominada devido às milhares de palmeiras devastadas pelos tratores de 2015 a 2019 serem enterradas no próprio território. As obras de terraplanagem que preparam o terreno na tentativa de receberem um porto com investimento chinês foram paralisadas. Mas de acordo com os moradores já existe uma movimentação para o retorno das atividades.
Pressão no Governo do Maranhão e arbitrariedade da Justiça
Os anos de 2019 e 2020 foram marcados por ações contraditórias do Governo do Maranhão no intuito de legalizar a grilagem em terra pública. Em 2019, a Secretaria de Estado de Indústria e Comércio autorizou, por meio do Decreto nº 002 de 30/04/2019 a empresa portuária TUP a realizar obras no território, levando à expulsão dos moradores do Cajueiro com mais de 40 anos de vida no local.
Em 2020, pressionado pela forte repercussão negativa da intensa violência investida no Cajueiro, e vendo ameaçado, na época, seu projeto de pré-candidatura à Presidência em 2022, o governador Flávio Dino (PCdoB) recuou e decidiu anular o decreto que viabilizou a desapropriação e realização de obras no Cajueiro.
Nesse ano, porém, o Decreto nº 002 de 30/04/2019 voltou a ser validado. A Justiça determinou recentemente a desapropriação da área de seu João Germano, conhecido como seu Joca. Em 1998, seu Joca e cerca de outras 110 famílias foram beneficiadas com um título concedido pelo Iterma (Instituto de Terras do Maranhão), do governo do Estado, que reconheceu 600 hectares do Cajueiro como terra pública. Em 2014, 200 hectares dessas terras foram vendidos pela empresa BC3 Multimodal para a TUP Porto São Luís. Há fortes indícios de grilagem de terra pública, de acordo com o MPE. Seu Joca ingressou pedido de liminar de Nulidade do Decreto. Até agora nada foi decidido.
Resistência e criminalização
Cajueiro resiste e enfrenta tudo e todos de maneira legal e pacífica. Tem sido assim. Foi assim no violento 12/08/2019 e também em 23/08/2019, quando foram vítimas da militarização da Secretaria de Direitos Humanos após decidirem ocupar o prédio. Sem nenhum diálogo por parte do secretário Francisco Gonçalves, o Gabinete Militar do Governo, de forma autoritária, entrou em ação, e os tratou de forma desumana.
A criminalização dos Movimentos Sociais é uma estratégia utilizada pelo Estado para enfraquecer a luta. A perseguição pessoal pela prática do cerceamento da liberdade de expressão a profissionais que acompanham a luta do Cajueiro é outra forma de intimidação. Duas ações do Governo correm na Justiça contra o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Rafael Silva. As ações exigem a retirada de conteúdo das redes sociais sobre a Militarização da Secretaria em agosto de 2019.
Contra todas as investidas das empresas, do governo do estado e do judiciário, moradoras e moradores do Cajueiro seguem unidos e firmes na luta.
Com informações do coletivo Raízes do Cajueiro
Foto: Ingrid Barros