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A resistência de Maria

Paulo Oliveira e Thomas Bauer (*)

No Dia Internacional da Mulher, Meus Sertões mostrou como Maria (**), 55 anos, resiste à pressão dos latifundiários do agronegócio e à violência de pistoleiros contratados para expulsar os integrantes das comunidades de fecho de pasto. Os fecheiros, como são chamados, há cerca de dois séculos vivem e preservam áreas do cerrado baiano cobiçadas por grileiros e pelo empresariado, que desmata totalmente as suas propriedades para aumentar a produtividade e depois tenta tomar a terra ocupada por posseiros para transformá-las em reservas legais e cumprir o que prevê o Código Florestal. O não cumprimento da lei prevê autuação, multa e processo e impede a concessão de crédito e a comercialização de produtos.

O avanço desenfreado do agronegócio, com apoio de autoridades estaduais, em um estado governado há 16 anos pelo Partido dos Trabalhadores (PT) atinge principalmente as mulheres. É o caso de Maria, moradora de um dos distritos de Correntina, na região oeste da Bahia. Ela não esquece do dia em que o filho mais velho, ex-aluno da escola agrícola, decidiu ir embora de casa porque a ação dos grileiros, pistoleiros e empresários acabou com as áreas de fecho de pasto onde o gado era solto nos períodos de estiagem e de recuperação do pasto, além de tomar terras à base da pressão e da violência, reduzindo o espaço das hortas.

“Foi meu filho mais velho que nos incentivou a fazer a horta que a gente tem hoje para sobreviver, depois que fomos obrigados a deixar de criar gado. No dia em que ele ia viajar para se estabelecer em outro estado, bateu um desespero. Ele ia no viveiro de mudas que criou, e voltava chorando, gritava. Eu também fiquei desesperada. Até hoje me emociono quando lembro disso” – diz.

Assim como José (**), os jovens estão deixando Correntina, criando um abismo geracional entre os agricultores familiares e pequenos criadores de gado, cujo conhecimento e as técnicas de preservação da natureza são repassados oralmente. A tendência é que estes saberes se percam.

Na entrevista concedida ao site Meus Sertões, a agricultora revela o sofrimento e a preocupação pelo pai, pelo marido e por todos os homens da família e amigos, que saem para a lida. Maria lembra do tempo em que os latifundiários não tinham se instalado na região e havia fartura.

Conta como as associações de agronegócios, os grileiros e os pistoleiros se instalaram e passaram a agir para tomarem as terras das comunidades tradicionais. Nos últimos 30 anos, ela constatou que os “pinóquios véios”, como o cantor e compositor Chico César define a bancada ruralista, escondem que o agro traz consigo a grilagem, a pistolagem, a miséria e a fome por não permitir que os fecheiros criem gado nos gerais e por reduzir o espaço das pequenas propriedades e o volume das águas dos rios e do lençol freático, além de contaminá-las com agrotóxico.

A também feirante relaciona ainda uma série de outras mentiras e diz que enquanto no marketing e na publicidade das emissoras de televisão, o agro é pop, na verdade, “o agro é morte”. Estão lá os pistoleiros, incluindo um ex-policial militar, para provar isso.

Este quadro desolador não impede que ela mantenha a luta para se manter na terra de seus antepassados. Na horta familiar, ela produz cerca de 700 quilos de alimentos orgânicos[1], fornecidos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O restante da produção é vendido em duas feiras da região.

A maior alegria da agricultora é quando alunos da rede municipal[2] dizem que os alimentos são gostosos. Além disso, Maria e o marido produzem salsa, berduega, tanchagem, mastruz, pimenta, tomate, jambu e milho.

“A couve é rica em proteínas, a berduega tem alto teor de ômega 3, a tanchagem cura inflamações e os mastruz é um poderosos antibiótico” – ensina.

Leia a seguir a íntegra da entrevista:

A senhora poderia se apresentar, dizer quais são as suas atividades profissionais e há quanto tempo a senhora mora aqui?

Meu nome é Maria (**). Eu moro aqui desde que nasci. Estou com 55 anos, me criei aqui. Só mudei de uma casa para outra depois que eu casei. Eu tive três filhos, que não moram mais comigo. Sou agricultora e trabalho com a horticultura. A gente planta milho, alho, cebola, feijão, arroz, mandioca, laranja, caju. Só que agora, no momento, nós não estamos plantando nem o feijão e arroz, porque meu marido está fazendo um tratamento médico e não pode fazer o plantio. Eu me criei sem comprar feijão e arroz.

O que a senhora cultiva hoje?

Aqui a gente planta alface, couve, rúcula, cheiro verde, coentro, pimenta.

Para quem vocês fornecem esse alimento?

Nós vendemos em feiras de dois municípios e fornecemos alimentos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). É a merenda escolar.

Como era a vida aqui antes da chegada do agronegócio?

Nossa vida era bem tranquila. Para começar, a água era abundante. Era água que a gente não dava conta da dimensão. Quando o agronegócio chegou, as águas foram acabando, muitas nascentes e riachos secaram e os rios principais perderam volume. O agro trouxe as sementes transgênicas e as nativas sumiram. As coisas começaram a mudar.

Os latifundiários queriam se apossar das propriedades daqui, dos fechos de pasto, desde essa época?

A grilagem de terra aqui no oeste da Bahia se intensificou a partir dos anos 1980. Aí, a cada dia que passa a coisa fica mais violenta e os grileiros mais fortes.

A senhora criou gado aqui no passado?

Tinha. Agora só tenho umas duas cabeças, só para não ficar sem. Mas a gente vivia do gado. Do gado e da produção agrícola. Do feijão, do arroz, da mandioca, do milho e da cana para fazer rapadura, cachaça e açucar. O gado era como se fosse um dinheiro que eu tinha no banco. O banco da gente era um boi, uma vaca. Quando tinha uma necessidade maior, a gente vendia o gado.

Por que a criação de gado na região foi diminuindo?

Por causa da grilagem. A gente utilizava os gerais, o cerrado, para soltar o gado enquanto o pasto nas propriedades se recuperava. Era assim o manejo. Aí com a grilagem[3] tivemos que acabar com o gado.

Então o agronegócio diminuiu a quantidade da água e trouxe a grilagem e a pistolagem?

Trouxe tudo. Eu diria que também trouxe a miséria e até um pouco da fome. Porque a partir do momento em que a gente não pode levar o gado para o cerrado e o volume das águas diminui para o plantio, a fome gera fome.

Alguma vez os latifundiários fizeram alguma oferta para comprar as posses daqui? Ou eles só tentam tomá-las? Como é que é a estratégia para se apropriar das terras?

Meu sogro e o meu esposo tinham uma área nos gerais, que era o fecho de pasto. Eles levavam o gado pra lá. Aí veio um grileiro e tomou aquela área. Eles tiveram que parar de levar os animais para lá. Havia outro fecho da mesma comunidade. Meu marido passou a levar os animais para este lugar. Só que o agro e o grileiro foram tomando aos poucos. O espaço diminuiu. Onde dava para criar 30 cabeças de gado, agora só cabiam cinco. A pressão fez o pessoal vender a posse do que restou.

A chegada do agro também provocou um racha nas associações, nos sindicatos?

Até hoje eles oferecem um projeto qualquer para uma associação para ser custeado com o dinheiro do agronegócio. Eles constroem, por exemplo, a sede de uma associação e colocam uma placa com o nome de uma entidade de empresários. Com isso, passam a controlar as pessoas. Às vezes eles oferecem empregos para os componentes de alguma família. Eles vão na escola agrícola, aplicam uma prova e contratam algumas pessoas. Aí dizem que o agro é importante para a agricultura familiar e geram um desconforto para a comunidade. Quando a gente tenta correr atrás da retomada dos territórios, muita gente não quer bater de frente com o patrão do filho porque ele pode ficar desempregado.

Quantos empregos são criados? Os latifundiários costumam dizer que são muitos.

Na verdade o agro não gera muitos empregos. Ele só traz miséria e agrotóxicos, que contaminam o solo e as águas de Correntina. Eles usam aviões para aplicar veneno nas lavouras, poluem o ar também. Só trazem coisa ruim. Quanto aos empregos é uma estratégia para desarticular as comunidades. Eles oferecem poucos empregos braçais. Para os cargos com melhor remuneração, como a operação de maquinário de primeiro mundo, trazem pessoas de fora, dizem que não há mão de obra qualificada na cidade. Quem foi contratado para arrancar raízes é dispensado quando o serviço é concluído.

Como está a questão da violência no campo?

No final do ano passado, ela ficou acirrada. Eles tiraram as cercas do último espaço de fecho de pasto que tínhamos. Colocaram a cerca deles e tiraram a placa com o nome de nossa associação. A gente não pode mais entrar. A última vez que o pessoal foi lá, tinha policiais, homens e mulheres, que nos pressionaram a não entrar.

Quem está a frente desse grupo?

Na verdade é um ex-cabo de polícia [4]. Inclusive ele chegou, procurou alguns diretores da associação e pressionou para vender a área. Esse policial ofereceu uma quantia, mas ninguém quis vender. Aí ele tirou nossa cerca e colocou a do fazendeiro. O grupo dele também derrubou alguns ranchos da gente. Agora a gente não consegue mais entrar no fundo de pasto. É só a gente chegar perto, que vem o segurança, vem a polícia. Eles até colocaram uma torre de comunicação bem próxima para avisar quando alguém se aproxima.

A senhora costumava levar o gado até o fecho?

Não. As mulheres não levavam o gado porque é uma distância muito grande até os gerais. Às vezes não vamos porque não aguentamos. Outras vezes porque não temos com quem deixar os filhos. Então a gente participa indiretamente: cuidando da propriedade; preparando comida para o marido e os filhos levarem; separando as roupas e o material que é usado durante a estadia no campo; preparando remédios caseiros.

Quanto tempo os homens costumavam passar nos gerais?

Antes de levar o gado, eles vão lá e preparam o local. Consertam cercas, limpam bebedouros dos animais e dão uma olhada para ver se tem onça rondando por lá. Essa preparação dura uns três dias. Só depois, eles levavam o gado. Aí passavam até uma semana para ver se os animais iam para o bebedor certo. Os bois e as vacas passavam dois meses nos gerais, soltos. Nesse período, os homens se revezavam e iam olhar os bichos pelo menos umas três vezes. Quando o pasto estava recuperado nas comunidades, o grupo voltava para trazer o gado de volta.

Antes dos pistoleiros e dos grileiros, qual era a preocupação das mulheres com relação aos seus maridos e filhos que iam para os gerais?

A gente ficava preocupada com as cobras, com a onça ou uma sucuri na beira do rio. Ficava com medo desses animais. Depois o medo maior era com os grileiros porque dos animais você tem como você se prevenir. Do pistoleiro, não. De noite a gente acorda assustada depois de sonhar que aconteceu alguma coisa. Então a gente começa a fazer oração. Muitas vezes fiz a oração preocupada de estar acontecendo alguma coisa. Enquanto esse povo não chegava a gente não sossegava. Se a combinação era pra eles voltarem com três dias não era cumprida, eu ficava aflita sem saber se alguém tinha adoecido ou se tinha sido atacado por uma cobra. Ou pior: ferido ou morto por um pistoleiro.

A senhora rezava para algum santo ou santa específico?

Ah, isso é certeza. Sempre tem um santo que a gente pede, né. Eu pedia muito para Nossa Senhora Aparecida e Santa Luzia. Mas cada pessoa tem o seu santo de devoção.

Algum dos seus três filhos manifestou vontade de trabalhar com a horta ou com criação de animais?

Meus filhos hoje moram em outro estado. O mais velho estudou em colégio agrícola. Eles falam em retornar, só que a propriedade é pequena e não tem mais espaço no fecho para criar um gado. Essa é a maior dificuldade. A maior parte dos jovens foi embora por não ter mais como criar gado. Então outra consequência da chegada do agronegócio e da pistolagem é os jovens deixarem as comunidades, deixando de dar prosseguimento a algo que acontece há 100, 200 anos.

Como foi que a senhora viu a partida dos seus filhos?

Com a continuidade do crescimento do agronegócio, eu fico me perguntando: os empresários falaram que trariam sustentabilidade. Só que não é verdade porque os jovens acabam indo embora por não ter como produzir em áreas pequenas. Ou seja, não ter como sobreviver. Uns também partiram por opção de estudo. Eu me lembro até hoje quando o meu filho mais velho saiu. Ele foi aluno da escola agrícola. Foi ele quem incentivou a gente a fazer a horta que temos hoje. Ele tinha um viveiro de mudas e foi muito difícil se desfazer dele. No dia da viagem dele, bateu um desespero. Ele ia no viveiro e voltava chorando. Às vezes gritava. Ele não queria deixar a profissão que aprendeu. Não queria, mas foi obrigado a sair. Eu também fiquei desesperada. E me emociono toda vez que falo nisso.

A formação de novas lideranças campesinas também fica prejudicada?

Com o afastamento dos jovens, você chega em muitas casas e só tem duas pessoas. É a mulher e o esposo. Então hoje tem essa dificuldade. Aqui mesmo tinha dois grupos de jovens, um mais novo e outro mais amadurecido. Uns casaram e foram embora; outros saíram para estudar e não voltaram. Os grupos se desfizeram. A comunidade, na questão de liderança e de pessoas para dar continuidade à luta, estão sem ninguém.

A senhora acha que tem solução para os problemas de Correntina?

Com certeza tem. Só que até agora a gente não sabe como que vai ser essa solução. O problema maior é que as nossas terras que são invadidas por pessoas de outros estados e de outros países, que devastam a natureza, sem se preocupar com o que acontecerá no futuro. O povo vem, não é de hoje, cobrando responsabilidade do estado e do município. Os governantes têm o conhecimento do que acontece no oeste da Bahia: a grilagem, a violência, o envenenamento das águas. Só que nenhuma providência é tomada.

Na publicidade, na propaganda que a gente vê na televisão diz que o agro é pop, que o agro e tec, que o agro é ótimo. Para a senhora o agro é o quê?

Quando eles passa lá na televisão diz: “Agro é pop”. E eu fico de cá: “Agro é morte”.


[1] São 300 quilos de alface, 150 kg de rúcula, 150 kg de couve, 50 kg de cheiro verde, entrega entre março e abril

[2] Segundo a Secretaria Municipal de Educação são 34 escolas de ensino fundamental I e II – 10 na sede e 24 na zona rural -, cinco unidades de pré-escolar e uma creche.

[3] Obtenção de posse ou propriedade da terra por meio ilícito. A forma mais conhecida é pela falsificação de títulos de terra que foram registrados em cartório. Outra forma é o desmatamento ilegal de terras públicas para simular uma ocupação e obter um título do governo ou lucrar com a venda da terra mesmo antes de obter um título.

[4] Meus Sertões apurou que o cabo se apresenta como Erlani ou Ernandes. Vários posseiros já o denunciaram, mas nenhuma providência foi tomada pelas autoridades. Segundo fontes da polícia, o ex-PM teria criado uma empresa de segurança para prestar serviço aos latifundiários. Consta ainda que, certa vez, um grupo de trabalhadores rurais o detiveram e o levaram para a delegacia, mas o suspeito foi liberado.


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(*) Matéria feita por Meus Sertões em parceria com a CPT-BA

(**) Nome fictício para preservar a seguranças dos personagens

Foto: Thomas Bauer

 

 

Povos e comunidades, Conflitos