ABRIL INDÍGENA: Campanha em Defesa do Cerrado lança dossiê "Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade no Cerrado"
Publicação integra a série "Eco-Genocídio no Cerrado", e destaca luta de povos indígenas contra envenenamento provocado pelo agrotóxico dos monocultivos
A Campanha Nacional em Defesa do Cerrado lança hoje, 24 de abril, o dossiê "Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade no Cerrado", que detalha, de maneira revisada e atualizada, o contexto justificador da acusação de Eco-Genocídio no Cerrado apresentado em novembro de 2019 pela Campanha ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP). O TPP acolheu a petição da Campanha e, após alguns obstáculos temporais impostos pela pandemia de Covid-19, o Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado foi lançado no Brasil em 10 de setembro de 2021, com o mote “É tempo de fazer acontecer a justiça que brota da terra!”. Ao longo de quase um ano, foram realizadas três audiências temáticas com a apresentação de 15 casos de violações contra povos e comunidades tradicionais em oitos estados – Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Tocantins e Piauí. Em 10 de julho de 2022, o júri do TPP apresentou seu veredito, condenando pelos crimes de Ecocídio do Cerrado e genocídio de seus povos o Estado Brasileiro, governos nacionais e estrangeiros, além de entidades, órgãos e empresas nacionais e internacionais.
Lançado em formato digital, o dossiê "Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade no Cerrado" descreve a expansão e consequências da Revolução Verde no Cerrado – especialmente a partir da década de 1970 –, identificada como o marco histórico que deflagrou o processo de devastação desta região ecológica em escala e gravidade. A partir desse contexto e em diálogo com a tipificação do crime de Ecocídio pelo TPP, a Campanha, por meio de membros de sua Equipe de Assessoria de Acusação, caracterizou o Ecocídio no Cerrado como os históricos e graves danos, e a vasta destruição promovidos pela expansão acelerada da fronteira agrícola sobre o Cerrado ao longo do último meio século.
A publicação também apresenta o entendimento formulado pela Campanha sobre a relação intrínseca entre o Ecocídio do Cerrado e o Genocídio dos seus povos, já que estes povos e o Cerrado têm se constituído mutuamente por meio da convivência contínua ao longo de séculos – e até milênios, no caso dos povos originários. Essa história de guerra na perspectiva dos povos pode ser contada por meio do termo “monoculturação”, cunhado pela liderança indígena do Cerrado mineiro e deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG) para se referir ao projeto e processo de morte das terras, sementes e identidades pela expansão avassaladora de monocultivos. É uma ideia que sintetiza a relação intrínseca entre diversidade biológica e cultural e o modo como a erosão dessa sociobiodiversidade é um dos aspectos fundamentais do Eco-Genocídio no Cerrado.
Socorro (à esquerda) e Nonata, quebradeiras de coco babaçu do Território Quilombola Cocalinho, em Parnarama, Maranhão. Foto: Leandro dos Santos
Luta indígena
A publicação apresenta denúncias sobre a contaminação – especialmente por agrotóxicos – de comunidades e seus territórios, e sobre o desmonte das políticas de segurança alimentar e nutricional, de comercialização da produção camponesa e dos produtos da sociobiodiversidade. As denúncias apontam que estas violações provocam a desestruturação dos sistemas agrícolas tradicionais, aumentam a fome e ameaçam a saúde coletiva. Em razão do seu caráter sistêmico no tempo e no espaço, as contaminações e desmontes contribuem para o ecocídio do Cerrado e para a ameaça de genocídio dos povos que dele dependem para manter seus modos de vida.
São seis denúncias de diferentes povos e comunidades do Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Piauí e Tocantins. Três dos seis casos acometem povos indígenas. Um deles refere-se à Comunidade Tradicional do Território Chupé e Comunidade Indígena Akroá-Gamella da Terra Indígena Vão do Vico, no município de Santa Filomena, no Piauí, que lutam pela permanência e titulação de seus territórios enquanto sofrem com a expropriação ilegal e desmatamento de parte de seus territórios tradicionais nas chapadas por empreendimentos de monocultivo de soja de grileiros, também beneficiados por investimentos de fundos de pensão internacionais. As violações causam impactos ambientais com contaminação por agrotóxicos nas nascentes de água, contaminação do solo e das roças das comunidades por via aérea através do vento.
O segundo caso envolvendo territórios indígenas tem lugar no Tocantins, e afeta os povos Krahô-Takaywrá e Krahô Kanela nos municípios de Formoso do Araguaia e Lagoa da Confusão. Eles resistem à apropriação ilegal das águas por meio de barragens, canais, bombas e desvio do leito do rio, à consequente seca, ao desmatamento e à contaminação por agrotóxicos na bacia dos rios Formoso e Javaés, afluentes do Araguaia, causadas pelos produtores do Projeto Rio Formoso de monocultivo irrigado de arroz, soja e outros, com apoio do estado e omissão do órgão fiscalizador. Enquanto sofrem a afetação nas águas, base da reprodução de seus modos de vida e sua saúde, os Krahô-Takaywrá lutam pela demarcação de seu território e os Krahô Kanela vivem em 7 mil hectares e lutam pela outra parte do território que está ainda em posse dos fazendeiros.
O terceiro e último caso apresentado no dossiê e que afeta povos originários no Cerrado diz respeito aos Guarani e Kaiowá e Kinikinau em Terras Indígenas e retomadas em diversos municípios do Mato Grosso do Sul. Estes povos lutam para seguir existindo como povos indígenas, enquanto enfrentam situações de desterritorialização, confinamento extremo, assassinatos, torturas, espancamentos, ataques com armas de fogo, agrotóxicos e insegurança alimentar extrema constituindo um processo de genocídio em curso, no marco de décadas de intensos conflitos com fazendeiros e grileiros do agronegócio exportador, com apoio do estado e de poderosos políticos.
Dirani coletando cajuzinho do Cerrado no Território Quilombola Kalunga, Goiás. Crédito: Jaqueline Evangelista Dias / Articulação Pacari
Série Eco-Genocídio no Cerrado
Dividido em quatro capítulos, o dossiê "Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade no Cerrado" faz parte da série "Eco-Genocídio no Cerrado", produzido pela Campanha e que terá, ainda este ano, outro dossiê lançado. No último dia 22 de março, a Campanha lançou a primeira publicação da série, uma coleção de 15 fascículos com os 15 casos de violações contra povos e comunidades tradicionais de oito estados do Brasil analisados pelo Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado.
BAIXE AQUI OS 15 FASCÍCULOS
A série Eco-Genocídio no Cerrado é um esforço da Campanha em produzir e difundir informações sobre o Cerrado e seus povos desde a base, pelas mãos das comunidades, a partir da terra, e com apoio de entidades, movimentos, grupos de pesquisa e universidades.
Conheça a seguir os títulos e temas de cada um dos quatro capítulos do recém-lançado dossiê "Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade no Cerrado":
Capítulo 1 – O Cerrado como zona de sacrifício do agronegócio: o papel dos agrotóxicos na monoculturação da vida
O capítulo inicial busca situar o papel dos agrotóxicos na monoculturação. Para isso, em primeiro lugar, apresenta dados sobre o uso exponencial de agrotóxicos no Brasil em geral e no Cerrado em particular, que vem provocando o adoecimento de territórios (Ecocídio) e corpos-modos de vida (Genocídio), por meio da contaminação, da perda da disponibilidade de alimentos e da erosão da agrobiodiversidade. A partir desse contexto, o capítulo analisa como a estrutura institucional do Estado brasileiro constituiu uma arquitetura da impunidade diante das violações sistemáticas de direitos promovidas pelo uso de agrotóxicos.
Capítulo 2 – “A dimensão da soberania alimentar e da sociobiodiversidade no contexto do Eco-Genocídio no Cerrado: denúncias a partir dos territórios”
O segundo capítulo do dossiê foi construído em torno da sistematização dos relatos comunitários que foram apresentados durante a Audiência de Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade da Sessão em Defesa dos Territórios do Cerrado do TPP, em março de 2022, trazendo concretude para o entendimento de como o crime de Eco-Genocídio se expressa nos territórios do Cerrado.
Capítulo 3 – “A privatização dos bens comuns dos povos do Cerrado e suas lutas contra a erosão do patrimônio genético e cultural”
O terceiro capítulo apresenta os dois lados desse conflito. Um é o lado de uma história milenar e ancestral, na qual o livre acesso, o manejo e o uso da agrobiodiversidade se baseiam no princípio do comum para a reprodução da vida, integrando um patrimônio genético e cultural dos povos a serviço da humanidade. Do outro lado, está uma história relativamente recente de motivação empresarial e geopolítica, na qual a erosão, o cercamento e o controle da agrobiodiversidade se baseiam no princípio da apropriação privada e, portanto, da exclusão de todos os não proprietários, para a reprodução do lucro, integrando o patrimônio privado de corporações e investidores. O capítulo 3 caracteriza a monoculturação do Cerrado – um dos principais vetores do Eco-Genocídio do Cerrado.
Capítulo 4 – “O desmonte bolsonarista de políticas públicas: ataques ao direito humano à alimentação saudável e adequada e à soberania alimentar”
O quarto e último capítulo do dossiê trata de como, desde o golpe jurídico-parlamentar de 2016, e sobretudo com a ascensão do fascismo bolsonarista, diversos direitos, políticas e programas de viés emancipatório foram sendo desestruturados, contribuindo para o aumento da fome e da insegurança alimentar e nutricional e para o estrangulamento dos modos de vida dos povos do Cerrado, o que acelerou e aprofundou o processo de Eco-Genocídio. O capítulo introduz nuances importantes ao situar o lugar e o papel histórico dessas políticas. O capítulo 4 representa uma fotografia de um momento histórico, considerando-se que muitas políticas desestruturadas já estão em processo de reconstrução, com a posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva, cuja trajetória tem reconhecido compromisso com políticas de segurança alimentar e nutricional.
Foto em destaque: Povo Krahô Takaywrá em seu território. Foto: Sara Vitória/CIMI GOTO