Povos e comunidades do Cerrado denunciam racismo por trás de ataques químicos feitos pelo agronegócio
“Eles jogam veneno lá em cima, não tem mais Cerrado pra proteger, e desce para as águas nos brejos. Tá tudo contaminado”. O relato de Jovecino Pereira da Silva, do Território Ribeirinho Chupé, município de Santa Filomena (PI), foi partilhado em 15 de março durante o primeiro dos dois dias de Audiência sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado, realizada pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.
A fala de Jovecino se somou a depoimentos de organizações, povos e comunidades tradicionais do Cerrado impactados pela ação e influência do capital que opera nos territórios pelas mãos do agronegócio e da mineração, e que tem se refletido na paralisação e anulação de procedimentos demarcatórios, grilagem de terras, queimadas, desmatamento e, de modo especial, na contaminação por agrotóxicos, utilizados como arma química por empresários do agronegócio como forma de exterminar ou inviabilizar a vida dos povos da terra.
No próximo dia 29/03, das 14 às 15hs (horário de Brasília), o júri fará um pronunciamento ao vivo com considerações sobre esta audiência. O pronunciamento será transmitido pelo YouTube da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. Até lá, assista aos dois dias de audiência.
AUDIÊNCIA DIA 15/03
AUDIÊNCIA DIA 16/03
Sintomas de intoxicação
Ainda no dia 15/03, Mercês Alves, indígena e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), contou como o povo Akroá Gamela do Vão do Vico, no Piauí, tem sido afetado. “Teve um período que por mais de dois anos não tinham como plantar. Quando iam no local, estavam lá os pistoleiros sem permitir que eles se aproximassem, e quando plantavam [o plantio] era destruído pelo trator”, conta, denunciando também o uso de agrotóxicos pulverizados através de aviões, que tem afetado as comunidades e todo ecossistema do Cerrado.
De Lagoa da Confusão, município mais afetado pelos agrotóxicos no estado do Tocantins, os indígenas Renato Krahô e Davi Krahô explicaram como os agrotóxicos têm impactado na saúde das comunidades. Davi apontou que duas das pessoas presentes no vídeo exibido instantes antes da sua fala já haviam falecido em decorrência das contaminações. Renato Krahô destacou que “muitas espécies de peixe não existem mais e muitas aves têm morrido no entorno das lavrouras”.
Eryleide Domingues, do Território Guyraroka (MS), trouxe em seu relato que são frequentes os sintomas de intoxicação na população do território, como dor de cabeça, diarreia, coceira na pele e nos olhos. Ela destacou que até o cheiro no território é marcado pelo odor dos produtos químicos. "Não conseguimos produzir alimentos para o nosso próprio consumo por conta dos ataques de formiga, dos animais que correm dos agrotóxicos para o alimento saudável”.
Outro povo que tem tido a soberania alimentar inviabilizada são os Kinikinau (MS), segundo Flaviana Fernandes, do povo Kinikinau. Ela explica que desde a guerra do Paraguai seu povo foi desterritorializado e atualmente vive no território do povo Terena. Para Matias Rempel, missionário do Conselho Indigenista Missionário (CIMI/MS), o contexto vivenciado pelas comunidades é de genocidio e etnocídio. “Desde os ataques paramilitares levados a cabo pelos fazendeiros e pistoleiros até os ataques que utilizam as forças de segurança do estado em face da proteção do agronegócio, do latifúndio: é um genocidio intencional e planejado”.
Sem soberania alimentar e com doenças
A situação do Assentamento Roseli Nunes, do Mato Grosso, foi um dos grandes exemplos do avanço da monocultura como responsável pela deterioração das condições de vida das comunidades. Cercadas por canaviais, 330 famílias do assentamento convivem diariamente com o veneno que é despejado pelos grandes empreendimentos. “O nosso assentamento é pantanal, é Cerrado, e estamos no meio desses biomas e também com o amazonas. Estamos vivendo com uma forte ameaça no território. Eu peço socorro e alguém há de nos ouvir”, denunciou Miraci Pereira, representante do território.
A presença de doenças ocasionadas pela convivência forçada com os agrotóxicos e a perda da qualidade do solo e dos alimentos, trazendo insegurança alimentar, foi um relato comum às comunidades. Um dos depoimentos mais contundentes e emocionados da audiência foi o de Marli Borges, do Quilombo Guerreiro, do Maranhão, que denunciou ainda o descaso da saúde pública da região e a omissão em identificar a causa das doenças. “Não querem fazer teste pra saber se é veneno no meu sangue. Eu não tenho saúde, só vivo doente, não sei se na próxima audiência estarei viva”, disse.
Leandro dos Santos, do Quilombo Cocalinho, também no Maranhão, lembrou que além do desmonte das políticas públicas em função do agronegócio, existe também a cooptação de pessoas da comunidade para trabalhar nos grandes empreendimentos. Lembrou ainda da perda da biodiversidade local, em especial das abelhas. “Estamos nos sentindo ameaçados por essa arma do agronegócio aqui na região”, comentou.
Criar poder popular
Zenilde dos Santos, do Acampamento Viva Deus, no Maranhão, relatou que são cultivados na comunidade arroz, feijão, milho, mandioca e abóbora. No entanto, esses alimentos já não têm a mesma qualidade para alimentação. “A gente planta uma melancia, nasce bonita e depois vai se acabando e eu acredito que é por causa do veneno. Nós somos desassistidos pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)”, relata. A comunidade convive com o veneno das plantações de eucalipto da Suzano Papel e Celulose.
Félix Lima, popularmente conhecido por Gato Félix, camponês e morador do Acampamento Viva Deus, fez o seu manifesto para o júri do Tribunal Permanente dos Povos enfatizando que a busca por lucro, orquestrada pelo capital, é o que tem pressionado as comunidades e os seus modos de vida. “Eu quero dizer para o tribunal que a luta é ferrenha. Que a gente não bata só no agronegócio, porque toda essa cadeia de agrotóxico vem de um capital. A classe trabalhadora tem que se juntar contra esse ferrenho capital. Não tem salvador da pátria, temos que criar o poder popular”.
As denúncias de violações feitas no primeiro dia de audiência foram seguidas por perguntas e manifestações do júri, composto pelo espanhol Antoni Pigrau Solé, professor de direito internacional público; a jurista e ex-vice procuradora geral da República Deborah Duprat; o bispo da Diocese de Brejo (MA) Dom José Valdeci; a jornalista Eliane Brum; a socióloga venezuelana Rosa Acevedo Marin; a jornalista e pesquisadora uruguaia do Grupo ETC Silvia Ribeiro; o coordenador jurídico a da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Eloy Terena; e a portuguesa Teresa Almeida Cravo, professora de relações internacionais. O jurista francês Philippe Texier também compõe o júri, e é o atual presidente do TPP.
“É um grito, é um clamor que está aí, que exige de nós uma tomada de posição", apontou Dom Valdeci Mendes, bispo do Maranhão, em sua manifestação como membro do júri. Ele ressaltou ainda a necessidade de que a sociedade se sinta indignada com esses absurdos e essa cadeia de perversidade. "Temos a missão de fazer essas vozes chegarem nos lugares mais distantes”.
Segundo dia
O segundo dia da Audiência Temática sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade do TPP, realizado dia 16/03, começou com a saudação de Olga Matos, assessora da Cese, que conduziu a facilitação da sessão. O primeiro momento foi destinado à interação entre a relatoria de acusação, representação do sistema de justiça brasileiro e o júri, com base nos casos apresentados no dia anterior e que denunciam a contaminação de seus territórios por agrotóxicos e o desmonte das políticas de segurança alimentar.
Rosalva Gomes, artesã do babaçu e assessora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), foi quem conduziu a mística de abertura que fez ecoar as vozes das encantadeiras quebradeira de coco, em menção à força auto-organizativa das Mulheres do Cerrado: "Deixa essa cozinha e vamos cair na luta!"
No processo de interação, Raquel Rigotto, relatora de acusação do Tribunal e membra do TRAMAS - Núcleo Trabalho, Ambiente e Saúde da Universidade Federal do Ceará, apresentou dados de estudos científicos que se somam às denúncias dos povos, assim como as acusações às corporações da cadeia produtiva do agronegócio e ao estado brasileiro. "Podemos dizer que o Cerrado é hoje uma zona de sacrifício do agronegócio brasileiro. São quase 47 milhões de hectares destinados a soja, cana, milho, algodão, e 63% destinados a pastagens. São consumidos 941 mil litros de água por segundo, destruídos 52% das vegetações nativas e utilizados mais de meio milhão de agrotóxicos, que representam 75% de todos os agrotóxicos utilizados no Brasil", alertou a pesquisadora, expondo a injustiça e o racismo que compõem esse sistema.
Nesse diálogo, Marco Antonio Delfino, procurador do Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul, também falou sobre o desafio do racismo estrutural do atual modelo de justiça e a perpetuação de um sistema desigual. "Quando a gente fala no sistema de justiça, não há como retirá-lo desse quadro de racismo estrutural que vivemos no Brasil. Importante entender que o direito é um instrumento de manutenção do status quo, o direito não é revolucionário. O que a gente pode fazer, principalmente pelo acesso dos povos tradicionais, indígenas, comunidades periféricas ao sistema de justiça, é que uma nova visão seja levada. O status é de desigualdade, então esperar do sistema de justiça o que nós, enquanto defensores de direitos humanos e militantes esperamos, infelizmente sabemos que poucas decisões contemplarão isso".
Manifestação das mulheres
O segundo e último dia da audiência contou, ainda, com a manifestação, ao vivo e em vídeo, de mulheres Cerradeiras, que clamam pelo direito à vida com dignidade. Trechos de uma carta-manifesto escrita pelas mulheres foi apresentado à audiência, ecoando suas vozes contra o ecocídio e o genocídio cultural no Cerrado, contra as desigualdades estruturais produzidas pelo patriarcado racista desde a era colonial. "Externamos anúncios em defesa da vida com justiça social, com igualdade, com garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada, com proteção da biodiversidade e do nosso patrimônio cultural. Por isso trazemos a este importante Tribunal Permanente dos Povos os nossos depoimentos, permeados por nossas próprias ideias e vivências", diz um dos trechos da carta-manifesto.
Racismo que estrutura as violações
As manifestações do júri no último dia da audiência contemplaram não apenas aspectos concretos das denúncias, como também as estruturas que engendram e perpetuam as violências cometidas pelo agronegócio, pela mineração e pelo poder público contra povos e comunidades do Cerrado.
A vice-procuradora-geral da República aposentada Deborah Duprat, membro do júri, destacou que o ponto principal da audiência é o racismo estrutural e ambiental que explica as violações de direitos dos povos. "Não existe um neoextrativismo e nem um neocolonialismo. Trata-se do velho projeto colonial", afirmou Duprat.
No mesmo sentido, o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Eloy Terena, também membro do júri, frisou que o racismo é um método de dominação, e como tal impõe restrições e nega acesso a direitos, como o próprio direito à natureza dos povos originários e tradicionais.
A jornalista e pesquisadora uruguaia Silvia Ribeiro afirmou, a partir dos depoimentos e apresentação de dados sobre contaminação por agrotóxicos, que existe "uma abundância de elementos para estabelecer que existe uma guerra química e ataques feitos aos territórios. "Há a violação da saúde, mas também uma invasão dos corpos, não apenas da terra. É muito brutal a presença de agrotóxicos no leite materno, na urina, no sangue, e que a chuva mantenha esse veneno", destacou Ribeiro.
A terra como fundamento de ser e existir
Se a raiz da violência denunciada é o racismo estrutural, as raízes da resistência e permanência estão na terra e no envolvimento dos povos com ela. Lourdes Laureano, raizeira e coordenadora da Articulação Pacari, falou sobre o uso das plantas nativas e frutos do cerrado como fonte de alimento e remédio. "Nós, raizeiras, consideramos como saúde não apenas ter acesso aos medicamentos, mas também aos recursos da biodiversidade nos nossos territórios e o manejo cuidadoso das plantas e alimentos para prevenção de doenças e cuidado da saúde. Consideramos o cuidado da terra como condição para cuidar da nossa saúde."
No mesmo sentido do pertencimento, Claudeilton dos Santos, do Movimento de Pequenos Agricultores da Via Campesina, lembrou que "quando falamos de soberania alimentar, estamos falando de um modo de ser, com capacidade para decidir sobre quem somos, como existimos." Santos ressaltou que “a fome é uma construção social do sistema capitalista, e ela existe porque gera lucro, subalternização, controle dos corpos e dos territórios.”
Ao fim da atividade, a liderança Davi Krahô, do Tocantins, manifestou a esperança de que o júri do TPP possa endereçar as demandas e apelos dos povos e comunidades que têm seus casos analisados. "A nossa realidade é triste, mas a vida segue. Que possa valer a justiça que brota da terra", finalizou Davi Krahô.
Imagem em destaque: CIMI GO-TO
Mulheres, Povos e comunidades, Sociobiodiversidade, Soberania alimentar e agroecologia