Recomendações a júri do Tribunal dos Povos ajudam a conter privatização e contaminação das águas do Cerrado
Por ocasião da Audiência das Águas, realizada entre os dias 30 de novembro e 01 de dezembro de 2021 no âmbito do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado elaborou uma série de 23 recomendações ao júri do tribunal para auxiliá-lo na análise dos casos.
Ao longo desta semana das águas, iniciada ontem (22/03) com a celebração do Dia Mundial da Água, a Campanha destacará as recomendações em suas redes sociais, ressaltando seu caráter urgente e necessário para a proteção das águas dos territórios, da sociobiodiversidade, da soberania e autodeterminação dos povos do Cerrado.
Princípios básicos
Cada uma das 23 recomendações foi amplamente discutida em uma oficina participativa que contou com as organizações, representantes e articuladores/as dos casos concretos denunciados ao Tribunal. Por meio das recomendações, a Campanha, além de subsidiar a atuação do júri, também propõe a ele que indique ao Estado brasileiro algumas medidas que ajudem a conter a apropriação privada e contaminação das águas (rios e aquíferos) do Cerrado, como processos provocadores de injustiça hídrica e racismo ambiental para os povos.
As recomendações estão baseadas em 6 princípios básicos também discutidos coletivamente e que ajudam a orientar as ações e políticas de gestão e proteção das águas. São eles:
1. A água é um bem comum, não passível de privatização e mercantilização, constitui direito humano fundamental, integrante do direito à alimentação básica, assim como é parte indissociável dos territórios tradicionais dos povos do Cerrado, portanto, essencial para a sua autodeterminação;
2. As águas integram os territórios tradicionais e aos povos do Cerrado devese garantir o seu acesso prioritário e uso livre;
3. Povo, território, cultura e natureza são elementos indissociáveis e a suas correlações devem orientar a construção, efetivação e promoção dos direitos dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e dos camponeses;
4. A prioridade de garantia e acesso às águas pelos povos indígenas, quilombolas, tradicionais e camponeses deve orientar a política nacional de proteção e gestão das águas;
5. Os povos indígenas, quilombolas, tradicionais e camponeses e seus modos de vida são os guardiões das águas do Cerrado, detém os conhecimentos sobre seus fluxos e técnicas necessárias para a sua preservação, e devem ser assim reconhecidos e protegidos como patrimônio cultural do país;
6. A efetivação dos direitos territoriais, do direito à permanência e do impedimento de deslocamentos forçados dos povos indígenas, quilombolas, tradicionais e camponeses é condição fundamental para a autodeterminação dos povos e proteção dos seus modos de vida.
RECOMENDAÇÕES
1. Adoção de todas as medidas necessárias para garantir e efetivar os direitos humanos (territoriais, sociais, ambientais e culturais) dos povos do Cerrado, sejam os povos indígenas, quilombolas, tradicionais ou camponeses, em cumprimento às determinações da Convenção 169 da OIT, Convenção sobre Diversidade Biológica, Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e outras Pessoas que trabalham em territórios Rurais, Constituição Federal e dentre outras normas nacionais e internacionais que protegem os direitos destes povos culturalmente distintos da sociedade hegemônica;
2. O Cerrado é patrimônio nacional brasileiro e deve ser assim reconhecido constitucionalmente, mediante a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 504 (PEC 504);
3. Que sejam formuladas e efetivadas, mediante o permanente direcionamento e protagonismo dos povos do Cerrado, as políticas públicas de acesso prioritário à água e ao saneamento básico como direito fundamental vinculado diretamente à vida digna de todos e de cada um, como parte integrante do direito humano à saúde, à alimentação e soberania alimentar, e do direito à autodeterminação dos povos, de modo a garantir a identidade, a cultura e a autonomia dos povos indígenas, quilombolas, tradicionais e camponeses;
4. Elaboração e implementação de uma Política Nacional de Proteção e Recuperação das Nascentes e outros corpos d’água do Cerrado, que deve envolver a participação efetiva e direta das comunidades e povos tradicionais e da sociedade civil organizada, e modo a prever ações de diagnóstico, preventivas e de monitoramento, com garantia de dotação orçamentária e destinação de recursos públicos;
5. Criação de um banco de dados público e de fácil acesso que agregue e disponibilize informações sobre a concessão de outorgas superficiais e subterrâneas (estaduais e federais) e autorizações de supressão de vegetação, de modo a garantir a fiscalização, controle social e transparência dos dados socioambientais quanto a quantidade e qualidade da água;
6. Realização de ações de monitoramento, controle e transparência do uso e da qualidade da água pelos estados e municípios;
7. Reconhecimento de que as ações e programas de Pagamentos de Serviços Ambientais (PSA) para conservação dos Recursos Hídricos afrontam a concepção das águas como bem comum, já que através de sua precificação e comercialização via contratos de PSA, favorece a mudança de mãos da gestão das águas para quem estiver disposto a pagar (o usuário-pagador), em despossessão dos usuários diretos nos territórios, os povos do cerrado, fragilizando sua autodeterminação;
8. Produção participativa de um mapeamento nacional descritivo das áreas de recarga, bem como das condições hídricas e ambientais atuais dos aquíferos do Cerrado;
9. Que seja ampliada a obrigatoriedade de manutenção de reserva legal em todo o Cerrado para 35%, estabelecendo-se ainda a obrigatoriedade de reserva legal em 80% (mesmo patamar da Amazônia) em áreas de recarga hídrica, sobretudo aquelas que se sobrepõem aos aquíferos Guarani, Bambuí e Urucuia;
10. Que sejam efetivadas ações para a recomposição obrigatória da vegetação nativa em áreas de APP das chapadas do Cerrado (da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais, conforme inciso VIII, art. 4 da Lei 12.651/12), não sendo consideradas como área rural consolidada;
11. Que sejam criados mecanismos de controle que detectem e impeçam a sobreposição de áreas de Reserva Legal e APP aos territórios indígenas, quilombolas, tradicionais e camponeses, ainda que não estejam oficialmente demarcados, em observância à prioridade aos seus direitos territoriais e em consonância com o entendimento da Corte Interamericana e o STF que reconhecem plena compatibilidade entre proteção do ambiente e os direitos territoriais e de uso dos recursos naturais por povos indígenas e tradicionais (teoria da dupla afetação);
12. Implementação efetiva dos direitos previstos na Convenção 169 da OIT, como norma de status supralegal que suspende a eficácia de outras normas infraconstitucionais em caso de colisão, garantindo-se a autodeterminação dos povos do Cerrado por meio da garantia de seus direitos: à posse e propriedade coletiva/comunal de seus territórios (art. 13 e 14), assim como ao uso, administração e gestão dos recursos naturais neles existentes (art.15), incluindo-se necessariamente as águas; de permanência e não deslocamento forçado por meio do dever do Estado não apenas de consultar, mas aferir o consentimento prévio, livre e informado das comunidades tradicionais, quilombolas, camponesas e povos indígenas diante de empreendimentos que possam impactar seus territórios e modos de vida (art. 7.1); assim como o dever de consulta livre, prévia e informada anterior e que deve ser atualizado em todas as fases de produção de quaisquer atos administrativos (inclusive para concessão de outorgas hídricas e autorizações de supressão de vegetação) e/ou legislativos que possam afetar-lhes (art. 6.1 e enunciado nº 29 do MPF); dentre outros direitos garantidos pela Convenção;
13. Impedimento, por pelo menos 10 anos, do desmatamento ilegal e também legal, ou seja, remoção completa da cobertura vegetal primária por corte raso (conforme definição do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE), em áreas de recarga ou de grande importância hídrica;
14. Criação de Zonas Livres de captação intensiva e desmatamento em larga escala, em territórios de grande importância hídrica ou em estado crítico de disponibilidade das águas (em qualidade e quantidade), preservando-se o direito de uso, administração e conservação dos recursos naturais presentes nos territórios tradicionais por parte dos povos indígenas, quilombolas, tradicionais e camponeses do Cerrado;
15. Que, em respeito ao princípio da precaução, não sejam concedidas ou renovadas outorgas hídricas e que sejam suspensas as já concedidas nas Bacias Hidrográficas que não contem com Plano de Bacia devidamente atualizado e fundamentado em critérios seguros e atuais para concessão, em cumprimento aos princípios e diretrizes da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9433/97);
16. Reconhecimento das tecnologias de captação, irrigação intensiva (sobretudo a captação por meio de poços de alta vazão e irrigação por meio de pivôs centrais) e armazenamento em larga escala (a exemplo dos grandes reservatórios artificiais de água) como inviáveis para contenção do ecocídio em curso do Cerrado, devendo haver suspensão de seu uso no tempo e/ou no espaço, conforme análise técnica de suficiência hídrica para acesso equitativa à água pelas presentes e futuras gerações;
17. Não promoção, implementação e/ou aprovação dos marcos normativos que fortaleçam a privatização e mercantilização das águas e a despossessão dos povos do cerrado do manejo das águas em seus territórios , como a Lei 14.119/2021 Lei de PSA; a Lei 14.026/2020, novo marco do saneamento básico, dentre outras;
18. Não aprovação da Nova Lei geral do Licenciamento Ambiental (PL 3729/2004);
19. Proibição da pulverização aérea de agrotóxicos em todo o Cerrado;
20. Promoção de uma ampla discussão com povos do Cerrado e sociedade civil organizada que viabilize a aprovação de um marco legal nacional que regule as medidas de segurança das barragens de água e de rejeito, o que deve envolver o fortalecimento dos órgãos de fiscalização sobre a segurança de barragens e criação de comissões participativas capazes de realizar ações de monitoramento;
21. Que na ocorrência de danos socioambientais às águas superficiais e subterrâneas do Cerrado e impacto a seus povos, lhes seja garantida a reparação integral, que deve envolver, no mínimo, aplicação do princípio da precaução e inversão do ônus da prova na investigação para que a empresa seja responsabilizada de forma objetiva pelo risco potencial ao meio ambiente de sua atividade econômica, definição e imposição das sanções pertinentes aos responsáveis; desde medidas urgentes para se evitar ou conter a realização do dano ambiental para restauração de seus status quo ante, quanto a indenização por danos morais e materiais, individuais e coletivos, dos lucros cessantes, dos danos ao projeto de vida, a ser acordada com as vítimas; a implementação de medidas efetivas de suporte emergencial e de reabilitação com critérios construídos conjuntamente com as comunidades e povos atingidos; a satisfação das vítimas; implementação de medidas que colaborem para a recuperação das áreas, ambientes e ecossistemas degradados; medidas que garantam o amplo acesso à informação acerca do processo de reparação; a implementação de medidas de caráter jurídico, político, administrativo e cultural que promovam a salvaguarda dos direitos humanos e previna para que novos eventos similares não se repitam (garantia de não-repetição), conforme dispõe a Convenção Interamericana de Direitos humanos, a Resolução 60/147 da Assembleia Geral da ONU, e a jurisprudência consolidada na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH);
22. Que seja reconhecida formalmente a imprescritibilidade dos crimes socioambientais que causem danos ambientais e aos povos do Cerrado e da sua reparação civil, garantindo-se a reparação integral das vítimas, no termos da recomendação anterior;
23. Que se garanta o reconhecimento, proteção e promoção por parte do Estado às tecnologias, técnicas e conhecimentos tradicionais de uso, gestão e preservação dos territórios e da qualidade e quantidade da água, como de fundamental importância para a própria tutela do direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de forma que, referidas práticas, tecnologias e modos de relação com o território do Cerrado não sejam criminalizadas.
Foto em destaque: João Zinclar/Acervo CPT