Insegurança na posse da terra inviabiliza vida integral e plena de indígenas e quilombolas
A morosidade, disparidade de dados e outros entraves burocráticos sistemáticos de governos e suas instituições serão objeto de denúncia da Campanha ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado entre os dias 8 e 10 de julho, durante a audiência temática Terra e Território e a audiência final.
A terra e o território são realidades e dimensões imprescindíveis à vida integral e plena dos povos indígenas e quilombolas. Desde a invasão dos europeus em 1500, a luta primordial dos povos indígenas tem sido pelo direito de permanecer em suas terras ancestrais, e a luta dos povos quilombolas, aqui, é a de permanecer nas terras onde seus antepassados aprenderam a viver e a pertencer após o sequestro em África.
É por causa dessa vital importância da terra e território para a vida desses povos que, do outro lado, governos e empresas se empenham em reduzir a quantidade de terras sob seus pés: indígenas e quilombolas protegem a biodiversidade nos territórios onde estão, e por isso são vistos como entraves à voracidade expropriadora do agronegócio, da mineração e de governos aliados a esses setores econômicos.
Seja pela supressão ou não concretização de direitos, seja pelos cercamentos, incêndios, pulverização de veneno, desmatamentos, ameaças de morte e assassinatos, setores privados e governos estão há centenas de anos se apropriando de terras ancestrais - como em 1500 - para obter lucros e vantagens privadas.
Morosidade burocrática e disparidade de dados: estratégias de apropriação de territórios tradicionais
A morosidade de processos burocráticos para demarcar e titular Terras Indígenas (TIs) e territórios quilombolas, respectivamente, e a invisibilização de povos e seus territórios em estatísticas oficiais, são estratégias político-jurídicas utilizadas pelos governos para seguir privando os povos de seu direito originário à terra. Ao gerar insegurança fundiária, os poderes Executivo e legislativo da União e dos estados respaldam invasores em suas investidas sobre terras indígenas e quilombolas, viabilizando a transferência, por meio da grilagem, dessas terras às mãos dos invasores e impedindo, assim, a vida plena dos povos em seus territórios.
Dados analisados pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado mostram bem essas duas dimensões. A base de dados da Funai (Fundação Nacional do Índio) aponta a existência de 127 Terras Indígenas (TIs) no Cerrado contínuo e 93 nas zonas de transição, somando 220 TIs. Desse total, 134 estão regularizadas, ou seja, foram registradas em cartório em nome da União e na Secretaria do Patrimônio da União após o decreto de homologação. As 134 TIs regularizadas pela Funai no Cerrado e suas zonas de transição somadas chegam a aproximadamente 27 milhões de hectares, ou 25,23% dos 107 milhões de hectares de TIs regularizadas pelo órgão indigenista em todo o país.
Contudo, ao tomarmos um cruzamento das bases da Funai com as do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que considera os territórios reivindicados pelos povos indígenas independente de seu reconhecimento pelo Estado brasileiro, encontramos 156 territórios indígenas no Cerrado contínuo e 180 nas áreas de transição, totalizando 338 territórios, 53% a mais do que as indicadas pela Funai. Um problema importante da base da Funai é o fato de que não há divulgação de planilhas consolidadas com a evolução anual das estatísticas.
Demora que gera violência
De acordo com o Decreto Federal nº 1.775/96, a demarcação da TI envolve o processo administrativo para identificar e delimitar o território tradicionalmente ocupado pelos povos indígenas. Para que isso ocorra, primeiro o povo reivindica o processo de demarcação junto à Fundação Nacional do Índio (Funai), que registra e qualifica a demanda para alinhar encaminhamento por parte de servidores, membros do setor do órgão responsável pela delimitação e identificação. Após, é instituída a portaria que forma Grupo de Trabalho (GT) especializado, composto por equipe multidisciplinar e povos indígenas, que ficará responsável pelo processo de identificação e delimitação da TI.
Entre todas as etapas do processo de demarcação da TI, há espaço de contraditório judicial e administrativo para estados e municípios onde estejam as TIs possam se manifestar. Especificamente nesta etapa da formação e da publicação dos trabalhos do GT, manifestam-se muitos contraditórios mobilizados por proprietários rurais ou outros sujeitos, especialmente realizadores de atividades econômicas agrícolas e extrativas, interessados ou efetivamente já ocupando as áreas de ocupação tradicional indígena.
Dessa maneira, muitas vezes as terras sob o trabalho do GT ficam caracterizadas por longos períodos como terras em estudo, não apenas atrasando o processo demarcatório, mas configurando a consolidação de posses irregulares sobre o território tradicionalmente ocupado, quase sempre gerando processos violentos de renitente esbulho possessório e deslocando as pessoas das terras. O fato de as terras estarem em estudo, igualmente, atrasam a colocação e registro das informações de delimitação nas bases fundiárias, reforçando factualmente e, mais tarde juridicamente, a consolidação da posse de outros sujeitos para outros usos sobre as terras tradicionalmente ocupadas.
Assim, ficando muito tempo em estudo, as TIs não podem passar à fase onde seus limites e existência são oficialmente declarados, via a fase da portaria declaratória, impedindo a etapa administrativa posterior que é a efetiva demarcação pela União da TI, levando posteriormente a sua homologação por ato de sanção do Poder Executivo e, por fim, ao seu registro no Serviço de Patrimônio da União (SPU), como terra da União, mas em posse e usufruto exclusivo do povo, ou povos indígenas, que reivindicou o processo de demarcação.
Quilombolas
Em comparação aos povos indígenas, a insegurança da posse da terra e a invisibilidade das comunidades quilombolas é ainda mais gritante. No seu aniversário de 26 anos, comemorado no dia 13 de maio de 2022, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) lembrou que "atua junto a 5.972 quilombos presentes em 1.674 municípios de 24 Estados, em todas as Regiões e Biomas do Brasil". As políticas de reconhecimento e titulação, no entanto, estão muito aquém das necessidades dessas milhares de comunidades.
A primeira fase para o processo de titulação do território quilombola é a certificação emitida pela Fundação Cultural Palmares (FCP) a partir da reivindicação das comunidades. Há 2.837 certidões de autorreconhecimento emitidas, as quais correspondem a 3.495 comunidades quilombolas identificadas no Brasil, um número cerca de 40% menor do que o total de comunidades identificadas pela Conaq (5.972).
Das certidões expedidas, 340 localizam-se no Cerrado contínuo e 454 nas zonas de transição. Essas comunidades começaram a ser certificadas a partir do Decreto Federal nº 4.887/2003, que regulamenta a titulação de territórios quilombolas, chegando a um pico de 395 certificações em 2006, com uma queda brusca da média anual a partir da posse de Jair Bolsonaro. Há atualmente 89 processos de certificação abertos no FCP para emissão de certidão para comunidades localizadas no Cerrado e zonas de transição.
A situação da titulação de territórios das comunidades quilombolas no Brasil e no Cerrado é crítica:
- No âmbito nacional, das 2.837 certificações emitidas, apenas 176 resultaram na titulação total ou parcial do território até novembro/2021, o que corresponde a 6,2% do total e 309 aguardam processos em andamento no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária);
- Das 340 certificações emitidas no Cerrado contínuo, somente 7 resultaram em titulação total ou parcial do território (2,05% do total) e outras 31 aguardam seus processos em andamento no Incra. As demais sequer tiveram seus procedimentos demarcatórios iniciados;
- Das 454 certificações emitidas nas zonas de transição do Cerrado, somente 25 resultaram em titulação total ou parcial do território (5,5% do total) e outras 41 aguardam seus processos em andamento no Incra;
- Dos 7 territórios titulados no Cerrado contínuo, 4 tiveram seus procedimentos realizados pelos órgãos estaduais de terras (Cemig em Minas Gerais, Iterma no Maranhão, Idaterra no Mato Grosso do Sul e Itertins no Tocantins). Dos 25 territórios titulados nas zonas de transição, 18 estão no Maranhão, 15 dos quais titulados pelo Iterma. Ou seja, os poucos territórios titulados puderam contar mais com os órgãos estaduais de terras do que com o órgão fundiário federal (Incra);
- A última titulação realizada pelo Incra de uma comunidade quilombola situada no Cerrado foi em maio/2018, quando foram expedidos 04 títulos referentes a imóveis que integram o Território Kalunga (GO).
A gravidade da situação das centenas de comunidades quilombolas sem título é refletida no fato de que, enquanto os 32 territórios quilombolas titulados no Cerrado e suas zonas de transição asseguraram 49.737,73 (uma média de 1.554,30 ha por território titulado), os 72 processos em andamento reivindicam 709.666,35 hectares (uma média de 9.856,48 ha) que beneficiariam 11.308 famílias. Isso mostra a disparidade média entre o que se reivindica em termos de área e o que de fato se titula. Tudo isso sem mencionar as tantas comunidades cujos processos de titulação sequer foram iniciados e a grande subnotificação que existe nestes dados, tendo em vista que das 794 certidões de comunidades quilombolas no Cerrado, apenas 89 possuem no banco de dados do Incra e/ou da FCP referência ao tamanho do território e à quantidade de família.
Povos e comunidades tradicionais
A situação dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais (PCTs) é ainda mais precária e complexa. Apesar da Constituição de 1988 já estabelecer os fundamentos para o reconhecimento dos PCTs e titulação de seus territórios tradicionais - depois reafirmados pela internalização da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (Decreto Legislativo nº 143 de 2002) e pelo Decreto Federal 6.040/2007 - nenhum desses instrumentos criou um procedimento, o que, ainda que não seja condição para a realização do direito (que é autoaplicável), abriu espaço para a inação do Estado. Não há, portanto, um levantamento confiável, em nível federal, de quantas comunidades tradicionais, dos diversos segmentos, existem no Brasil ou no Cerrado.
Foi em nível estadual, em especial em Minas Gerais, Bahia e Piauí, que as normas avançaram mais no sentido da criação de procedimentos. Como a lei piauiense é mais recente, apresentamos os dados que conseguimos obter a respeito da situação dos PCTs do Cerrado mineiro e baiano, como uma expressão da invisibilidade generalizada dessas populações no país.
Na Bahia, as comunidades tradicionais de fundos e fechos de pasto são cadastradas pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI). Até março de 2021 o quadro do andamento destes processos era o seguinte: 118 comunidades com procedimentos abertos em tramitação na SEPROMI; 91 comunidades com procedimentos abertos aguardando apenas despacho do Governador para conclusão e 758 comunidades com a certificação expedida. Destes, 231 processos referem-se a comunidades localizadas no Cerrado (cerrado contínuo e transições), sendo:
Dos 08 estados aos quais foram enviadas perguntas sobre a situação do autorreconhecimento e da garantia do direito ao território das comunidades tradicionais (Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará, Piauí, Tocantins), 03 deles enviaram respostas: Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul.
Do ponto de vista fundiário, somente 02 comunidades tradicionais de fundos e fechos de pasto celebraram Contratos de Concessão de Direito Real de Uso com o Estado da Bahia até o momento, porém não estão localizadas no Cerrado.
Quanto aos processos de certificação no Estado de Minas Gerais, foi informada pela Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais (CEPCT) a existência de 43 processos, sendo que 29 são referentes a comunidades situadas em municípios onde predominam o Cerrado contínuo e suas transições (67,44%), assim distribuídos:
Importa destacar que alguns dos certificados correspondem a mais de uma comunidade. As informações fornecidas revelam ainda que das 29 certificações acima indicadas, 05 referem-se a comunidades que se autoidentificam como pertencentes ao segmento das apanhadoras de flores sempre viva; 04 congendeiras; 09 geraizeiras; 02 de matriz africana e povos de terreiro; 04 vazanteiras e pescadoras; e 04 veredeiras.
Quanto à regularização dos territórios tradicionais, a Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SEAPA) informou a existência de 14 comunidades tradicionais que se identificam como apanhadoras de flores, pesqueiras, vazanteiras, geraizeiras e/ou agroextrativistas[1] com processos de regularização fundiária em curso. Deste universo, 09 encontram-se no Cerrado contínuo, 01 nas transições do Cerrado e 04 em outros biomas. A Secretaria indicou que os processos estão aguardando a elaboração do RTID para que seja dado prosseguimento.
No caso do Estado de Goiás, o relatório apresentado pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (SEDS) consta uma relação de 78 povos originários e comunidades tradicionais que foram visitadas e nas quais houve coleta de dados sobre saneamento, renda, acesso à saúde e à educação, entre outros. Nesta lista havia 86 comunidades quilombolas, 04 terras indígenas, 05 comunidades de terreiro, 06 povos ribeirinhos e 01 comunidade cigana, das quais 03 se localizam nas transições do Cerrado e todas as demais estão em cidades nas quais predomina o Cerrado contínuo. A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (SEDS) estima que 14.246 famílias integram estes grupos culturalmente diferenciados em Goiás, o que corresponde a aproximadamente 57.922 pessoas.
Nos dados publicizados pelo Estado do Mato Grosso do Sul, constam 22 comunidades quilombolas e 40 terras indígenas, embora cabe ressaltar que, como esses dados são também documentados por FCP/Incra e Funai respectivamente, já constam da sistematização que fizemos aqui. Foi informado ainda que os dados sobre as comunidades ribeirinhas ainda estavam sendo estratificados. Por fim, é importante apontar a dificuldade de obtenção dos dados relacionados aos povos e comunidades tradicionais no âmbito dos estados, uma vez que não há divulgação de informações consolidadas e atualizadas nos sites, sendo necessário solicitar por e-mails aos órgãos responsáveis.
No entanto, apesar dos problemas com os dados, o cruzamento das diversas bases demonstram a sistemática não titulação dos territórios tradicionais, deixando os povos do Cerrado vulneráveis à ameaça de genocídio cultural no processo de ecocídio, provocado sobretudo pela expansão da fronteira agrícola, minerária e logística no último meio século.
Denúncia ao TPP
A morosidade, disparidade de dados e outros entraves burocráticos sistemáticos utilizados como estratégia política e jurídica por governos e suas instituições para enfraquecer e expulsar povos e comunidades tradicionais de suas terras serão objeto de denúncia da Campanha ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado entre os dias 8 e 10 de julho, durante a audiência temática Terra e Território e a audiência final.
A audiência temática apresentará denúncias centradas nos processos de desmatamento e grilagem de imensas porções de terras públicas e a imposição de grandes projetos de “desenvolvimento”, ao mesmo tempo em que não avançam processos de titulação de terras indígenas e territórios quilombolas e tradicionais da região como processos provocadores do racismo fundiário e ambiental para os povos. Para esta audiência, serão apresentados os 15 casos analisados pelo Tribunal.
Saiba mais sobre as audiências temática e final aqui.
Foto: Bruno Santiago/Acervo CESE